A tabela abaixo usa dados da OMS (confirmados e mortes) e da ONU (dados populacionais). Dá para trabalhar muito com estes dados, mas queria chamar atenção para os vários percentuais de mortalidade e como podemos usar isto para estimar o número de casos no Brasil.
A taxa de mortalidade deveria ser muito próxima em todos os países, mas não é. A explicação mais simples para isto é a quantidade de testes que estão sendo realizados, incluindo assintomáticos e principalmente em mortos.Dos países na tabela, Alemanha e Coréia do Sul estão fazendo testes em massa - e neste caso a mortalidade é parecida. Países como Espanha e Itália pararam de fazer testes por vários motivos. Na Espanha, em algum momento os testes simplesmente acabaram, veja aqui. Na Itália, problema parecido aconteceu, e a situação só foi controlada em algumas poucas cidades que testaram em massa no começo e fizeram um lockdown. O exemplo (positivo) mais claro disto é a cidade italiana de Vò (veja aqui). Perceba ainda que o percentual da população infectada nestes países é enorme, e mesmo sendo países ricos, haja testes. Chega um momento que deve ser mais prático ir tratando todo mundo e pronto. Mais um fator que explica o alto índice de mortalidade em alguns países: a idade da população. A população da Itália tem média de idade muito alta, mas não deveria destoar tanto do resto do mundo. A falta de testagem em massa continua sendo a melhor explicação. O Reino Unido admitiu recentemente isto, e inclusive estão elogiando os testes em massa que a Alemanha está fazendo (veja aqui).
Enfim, o que a tabela diz sobre o nosso caso?
Se considerarmos uma mortalidade de 2,38% (média entre a taxa de Alemanha e a taxa da Coreia), usando os dados de mortos no Brasil, devemos ter pelo menos 65 mil casos confirmados no Brasil, ao invés dos 25 mil oficiais. Outros fatores que atestam nossos dados estarem bastante comprometidos:
o percentual da nossa população que está infectada é baixíssimo, menor ainda que o da Coreia (confira na tabela), que fez um lockdown completo, muito diferente do que está acontecendo aqui;
muitos mortos estão sendo testados, ou seja, temos potencial para muito mais infectados, principalmente assintomáticos;
por mais que desejamos otimistas, ainda não chegamos nem perto do pico de infecções. Ontem, pela primeira vez, atingimos 200 mortos/24h.
É aqui que o problema fica sério: se a estimativa de 65 mil casos estiver certa (e meu chute é que ela também está bem abaixo do real), temos grande potencial para em pouco tempo estarmos bem pior do que os EUA, que hoje está com quase 2.000 mortos/24h. Os dados aqui batem bastante com os produzidos por Vinicius Bastos Gomes e Fernando Wittmann (veja aqui), e neste estudo, usando dados já consolidados, eles indicam que EUA levaram 10 dias para pular de 1.500 mortos para 10.000. Se nossa situação for parecida com a deles, já teremos passado a barreira dos 10.000 mortos no começo de maio. Se estivermos piores que os EUA (muitas regiões do Brasil ainda não estão testando quase nada), então mais gente ainda terá morrido até lá.
Logo que as aulas foram suspensas (e a Unicamp foi a primeira universidade a fazer isto), um dos motivos de pânico entre os docentes foi: como contornar o problemas da falta de aulas. Parece piada, mas não é. Como o semestre recém começou, todo mundo está com 100% de energia. Supondo que os alunos também estejam, seria um desperdício não aproveitar esta vontade toda de aprender matemática.
A primeira ideia é simples: estamos em 2020, devem existir vários recursos online para nos ajudar nisto. A primeira objeção filosófica à ideia chega rápido: qualquer conversa sobre "recorrer a recursos online" costuma culminar na discussão mais geral sobre "EaD vs presencial", precarização de cursos EaD, etc.
Esta discussão não é o foco deste post. Eu apoio bastante a ideia de que devemos utilizar recursos tecnológicos no ensino, e mesmo que eles ainda não possam substituir totalmente aulas presenciais, são excelentes ferramentas complementares. Afinal de contas, quem nunca usou o YouTube para aprender algo? Ok, não dá para aprender a fazer cirurgia cardíaca pelo YouTube, mas muita coisa dá, e acho que, num certo nível, matemática é uma delas, apesar de exigir esforços diferentes dos usuais de todos os envolvidos.
Recursos da Unicamp
A Unicamp tem essencialmente duas plataformas de suporte online aos cursos: o Moodle e o Google Classroom. Nenhuma destas ferramentas substitui bem as aulas presenciais (minha opinião).
O IMECC, alguns anos atrás criou um site chamado "Cursos do IMECC" que concentra uma infinidade de recursos online sobre as disciplinas do ciclo básico. O curador de conteúdo foi o Marcelo Firer. O site funciona como apoio às disciplinas. Tem vídeos, links para sites, listas de exercícios.. enfim, este sistema recentemente alcançou 1 milhão de acessos, tanto internos/Unicamp quanto externos (e até do exterior, de países lusofalantes). É um bom repositório de informações.
O Moodle é bastante personalizável, inclusive tem recursos úteis para geração automática de testes/provas. Um problema adicional, no nosso caso, é que recentemente a Unicamp sofreu um ataque virtual e muitos materiais do Moodle se perderam. Conheço pessoas que fazem o uso fantástico do Moodle, por exemplo o pessoal da estatística do IMECC (Samara, Tatiana e outros). Os vizinhos do IFGW também tem um banco de dados enorme com questões e já utilizam faz muito tempo.
Eu tenho feito uso do Google Classroom há alguns anos e ele funciona muito bem para envio de informações aos alunos, para compartilhamento de materiais, para pequenas enquetes e até para pequenas atividades avaliativas (no meu caso, mando o .pdf, os alunos resolvem, fotografam a resolução e devolvem). A vantagem é que cada post tem uma seção de comentários, e às vezes esta seção funciona como um fórum de dúvidas sobre o que foi postado. Também utilizo o Classroom (e meu website) para compartilhar os slides que uso nas aulas.
Slides?
Usar slides em aulas é outra coisa que gera polêmica, mas os alunos tem recebido bem e eu consigo deixar minhas aulas mais organizadas; meu conceito no GDE e nas avaliações de curso melhorou bastante depois que eu passei a usar os slides, talvez não pelos slides em si, mas pela aula estar mais organizada do que antes, com as minhas folhinhas bagunçadas - mas isto é mais uma característica pessoal do que uma sugestão de uso.
Deixando de lado as discussões filosóficas, como fazer a coisa acontecer?
Eu fui recentemente adicionado ao grupo do Facebook STEM faculty blundering through remote teaching in a pandemic (obrigado, Helena!), que como o título sugere, foi criado por professores meio desesperados por aprenderem a dar aula de forma remota. O grupo é público, e recomendo que todos os interessados participem. A troca de experiências por lá tem sido muito boa.
As sugestões a seguir foram aprendidas lá no grupo, ou por buscas no Google, ou por sugestões de amigos professores. Muitas delas estão também na Página de apoio ao Ensino Digital do (EA)^2 - Espaço de Apoio ao Ensino e Aprendizagem, que criou uma espécie de "comitê interno de crise" e está coletando/produzindo dicas para enfrentarmos o momento. As sugestões descrevem a minha experiência, que pode ou não ser útil para outras pessoas. Espero que seja!
Slides!
Como eu já preparava slides para as aulas, continuei fazendo, mas com menos conteúdo. Em geral, mesmo projetando os slides, eu dou aula "normalmente" na lousa, ficando o slide para coisas mais detalhadas/formais. Por exemplo, se vou demonstrar um teorema, o enunciado preciso, com as hipóteses, estão lá projetados no slide - na lousa, o foco é só na demonstração. Eu faço os slides usando o LaTeX/Beamer ou então o Keynote, mas as mesmas dicas funcionam com o Google Slides ou o Powerpoint. Aliás, Keynote e Powerpoint possuem recursos próprios de gravação de áudio junto com os slides, que eu não sei usar, mas já vi pessoas usando muito bem.
O simples .pdf do slide não substitui a aula. O que eu estou fazendo é gravando a tela do meu computador enquanto passo os slides e explico os conceitos. Então os slides, neste momento, servem basicamente para organizar o conteúdo. Eu não tenho um tablet, e mesmo se tivesse, minha letra é muito feia para este objetivo. É recomendável utilizar algum leitor de .pdf que tenha recursos de marcação, para que de fato a aula seja mais dinâmica.
Na esquerda, o slide como feito pelo LaTeX/Beamer. Na direita, o slide após a gravação do vídeo para os alunos. Slide bom é slide riscado!
É importante que os slides sejam feitos com isto em mente: estou preparando material que será apresentado de forma dinâmica. Às vezes é preciso fazer e refazer algumas vezes até ficar num formato bom.
Transformando os slides em um vídeo: Quicktime
Não é usual que pessoas tenham softwares para gravar a tela do computador, mas eles são muito fáceis de operar. Eu utilizo o Quicktime do Mac. Nele, é só ir em Arquivo/Nova gravação de tela, selecionar qual área da tela será gravada e pronto! Tudo que aparecer naquele pedaço da tela será gravado. Basicamente eu coloco janela com o .pdf ali naquela área e passo os slides normalmente, explicando o conteúdo (o Quicktime grava o áudio também). Existem vários tutoriais sobre isto no YouTube.
Somente a área mais clara será gravada pelo Quicktime.
Eu não sei como fazer a gravação de tela no Windows ou no Linux, mas neste site existem ótimas dicas de softwares que fazem isto. Parece que o Windows vem com um aplicativo nativo para isto.
Eu usei este método para gravar um vídeo com a aula de hoje de Cálculo III. Você pode conferir o resultado abaixo (rapidamente você vai perceber qual é o principal problema na gravação de aulas em vídeo: a captação de áudio; sem um microfone bom, ela é muito ruim):
Existem soluções comerciais muito boas que permitem edição a posteriori do vídeo. O Quicktime tem poucos recursos para isto. Eu não me preocupo muito e, como podem perceber no vídeo acima, é comum errar alguma coisa, meio como se fosse uma aula mesmo. Entretanto, pessoas mais preocupadas com a própria imagem (desisti disto depois dos memes da Rinha de 2019) podem querer fazer vídeos perfeitos, sem erros e daí recomendo usar o ScreenFlow ou o Camtasia.
Aliás, o Camtasia é o mais usado para isto no mundo e ele está gratuito até junho, por causa da epidemia, numa ação muito legal dos desenvolvedores (fora de epidemias ele é um software super caro).
Utilizando o Google Meet ou o Zoom.us
Recentemente (hoje!) eu usei com sucesso duas ferramentas para reuniões online que servem bem para gravar aulas. Ambos tem a vantagem de que você pode fazer uma transmissão ao vivo, e também pode gravar o que está sendo transmitido, para que alunos possam ver depois.
Google Meet
O Google Meet é muito bom para reuniões remotas. É como usar o Skype, mas com suporte a até 250 participantes (o limite de 250 participantes está gratuito para todos temporariamente, por conta da epidemia). Ele tem a grande vantagem de funcionar diretamente por este website e ser extremamente simples e intuitivo, como quase tudo do Google.
Ao entrar no site meet.google.com e fazer login, basta ir na opção "Participar/iniciar reunião". O site vai pedir um nome para a reunião. Sua webcam começará a aparecer. Ao clicar em "Participar da reunião", você terá começado a reunião. Uma janela com a URL da sua reunião vai aparecer, basta enviar para os outros convidados (no caso, para seus alunos) e todos entrarão na aula.
Por padrão, os alunos verão a imagem da sua webcam. Se você clicar em "Apresentar agora", no canto inferior direito da tela, sua tela será compartilhada (ao invés da imagem da webcam; a imagem da sua câmera vai continuar aparecendo, do lado direito, para todos os outros participantes).
Outra coisa importante é solicitar ao Google Meet que grave sua aula, para que outros alunos possam assistir depois. Para isto, clique em "..." no canto inferior direito e peça para "Gravar a reunião".
Quando a aula acabar, o Meet vai salvar o arquivo com o vídeo no seu Google Drive (você será notificado por e-mail). O vídeo salvo pelo Meet fica como neste print:
Uma dica que funciona é a seguinte: em caso de dúvidas, sempre pergunte aos alunos "o que está acontecendo" no vídeo. Eu por exemplo fiquei um pouco confuso se eles estavam vendo minha webcam ou minha tela. Lembre-se: a imagem da sua webcam sempre aparece.
Zoom.us
Eu não conhecia o Zoom.us até começar a epidemia. Ele é muito parecido com o Google Meet, mas requer a instalar de um aplicativo no computador. Mesmo esquema: você inicia a reunião e aparece uma janela com uma URL para você divulgar aos alunos. Para dispositivos móveis, existe um app que precisa ser baixado. Eu não vou fazer um tutorial completo do Zoom, mas ele é muito intuitivo.
O resultado do vídeo gravado pelo Zoom é como abaixo. Eu achei a qualidade do Zoom melhor do que o Google Class, principalmente pelo seguinte: o Class grava a tela inteira, enquanto no Zoom dá para selecionar somente uma janela para ser gravada. Isto deixa o ambiente muito mais limpo. Outro recurso legal do Zoom é uma espécie de whiteboard para poder rabiscar (fica ótimo num tablet, mas também dá para fazer muita coisa no computador).
Enfim, ele tem mais recursos que o Google Meet, como por exemplo compartilhar a tela do celular, mesmo conectado somente por bluetooth. O Zoom está gratuito por enquanto, por causa do covid-19, mas em geral é um software pago.
Printscreen do vídeo gravado com o Zoom.us: modo de gravação da janela de slides e modo whiteboard.
Atualização: descobri durante uma reunião com o Lino que o Google Meet também permite que você selecione a janela que quer compartilhar, mas precisa usar o Firefox (talvez também funcione no Chrome, não testei). No Safari/Mac não funciona. O whiteboard/jamboard do Zoom.us ainda dá uma vantagem para ele, mas passei a preferir o Meet por conta da praticidade de usar só o browser e nenhum plugin adicional. Conclusão
Acho que em situações como a que estamos passando, recorrer às videoaulas é uma boa iniciativa. Manterá os alunos motivados e aproveitaremos para aprender algo novo, que pode ser usado mesmo quando o mundo voltar ao normal (voltará!). Existem situações excepcionais, disciplinas que não podem totalmente para o online, mas com boa vontade dá para fazer muita coisa.
Um problema não abordado aqui: o que fazer com as avaliações? Como fazê-las de forma online, mantendo a qualidade, e evitando colas? Bom, não sei. Talvez trocar avaliações tradicionais por projetos.. isto é um problema que ainda tentarei resolver nas próximas semanas, e talvez faça um post sobre o assunto.
Espero que este relato/tutorial seja útil para alguém. Estou à disposição para ajudar, apesar de não ter conhecimentos muito avançados sobre isto (qualquer coisa, me mande um e-mail: rmiranda@unicamp.br).
A epidemia do corona vírus está causando milhares de mortes ao redor do mundo. A situação é extremamente preocupante em países como China, Irã, Itália e Espanha.
No Brasil, até o momento, não existem mortes registradas. Até agora (13 de março) são 98 casos confirmados de infectados e cerca de 1500 casos estão sendo investigados. Autoridades sérias são unânimes em afirmar que o número de casos vai crescer muito.
O que é este "muito"? Como quantificar isto? Como a matemática pode ajudar a entender isto?
Existe uma área de pesquisa, chamada de epidemiologia matemática, que estuda exatamente este tipo de problema. Esta não é minha área de pesquisa, mas como em geral os modelos epidemiológicos fazem uso de equações diferenciais, vou me meter um pouco no assunto. Além disto, como as aulas presenciais foram suspensas pela Unicamp e eu prometi para meus alunos que iria mantê-los ocupados com atividades online, nada melhor do que fazer algumas contas com equações diferenciais aplicadas à nossa ordem do dia.
Obviamente isto aqui não é um artigo científico, e o objetivo é simplesmente matematizar algumas características do problema. No final existem algumas referências bibliográficas com análises mais profundas, inclusive do ponto de vista estatístico. Uma análise muito bem feita sobre a situação na Itália está neste artigo. Nosso modelo epidemiológico
Iremos utilizar um modelo tradicional para estudar a propagação de doenças que são causadas por vírus ou bactérias: as equações SIR. As letras vem de Suscetíveis, Infectados e Recuperados. Neste artigo as equações SIR foram utilizadas para modelar com bastante sucesso a evolução de uma epidemia de gripe que atingiu os EUA nos anos de 1968 e 1969 e ficou conhecida como gripe de Hong Kong.
As equações SIR dividem a população total em três grupos: os que ainda não foram infectados (S), os que estão infectados (I), e aqueles que foram infectados e já se recuperaram (R). O grupo dos infectados é que de fato tem a capacidade de transmitir a doença. Cada população evolui com o tempo, portanto estes valores são funções de $t$: $S(t)$, $I(t)$ e $R(t)$.
Ao invés de usar números absolutos da população, será mais simples considerar as funções normalizadas. Se $N$ é o total da população, vamos considerar as funções $s(t)=S(t)/N$, $i(t)=I(t)/N$ e $r(t)=R(t)/N$. Note que enquanto $S(t)+I(t)+R(t)=N$, estas novas funções satisfazem $s(t)+i(t)+r(t)=1$ para qualquer valor de $t$.
Equações
Veremos agora quais equações descrevem a evolução de cada uma destas populações.
Vamos assumir que a população suscetível não aumenta ou diminui devido a fatores externos (mortes e/ou nascimentos), mas só pela infecção. Isto não é totalmente verdade, mas esta hipótese simplifica o modelo.
A quantidade $s(t)$ de indivíduos suscetíveis diminui: no começo ela é igual à população toda, e a medida que pessoas são infectadas, $i(t)$ e $r(t)$ aumentam e portanto $s(t)$ precisa diminuir. A variação depende basicamente de quantas pessoas sadias cada infectado consegue contaminar por dia, e vamos denotar este valor por $c$: o fator de contaminação. Apesar do nosso modelo ser em tempo contínuo, em geral vamos considerar unidades pequenas de tempo $t$. Assim, cada infectado contamina em média $c\cdot s(t)$ pessoas por dia. Como são $I(t)$ infectados no dia $t$, a variação no número de indivíduos suscetíveis é de $S'(t)=-c s(t) I(t)$. Dividindo esta equação por $N$ obtemos nossa primeira equação diferencial: $s'(t)=-cs(t)i(t)$. Inicialmente temos $s(0)=1$ (ou, de forma equivalente, $S(0)=N$).
A constante que estamos denotando por $c$ em geral é denotada por $R_0$ e chamada de R naught (mais detalhes aqui). Estimativas recentes para o $R_0$ no caso do coronavírus indicam o valor de $R_0=2,2$, ou seja, em média uma pessoa infectada irá contaminar outras 2,2 pessoas. No caso do sarampo, por exemplo, este número é maior do que 10.
Deduzir a equação que descreve a variação da população de recuperados é fácil. Uma fração de pessoas, que vamos denotar por $b$ (taxa com a qual as pessoas ficam boas), se recupera a cada dia, e esta é uma fração do número de infectados. Além disto, a função $r(t)$ aumenta a cada dia. A variação desta população é dada por $r'(t)=b i(t)$, sendo a condição inicial $r(0)=0$ (no começo não existem indivíduos recuperados).
Para deduzir a equação que descreve a evolução da população de infectados, vamos partir de uma hipótese bastante razoável: a soma das variações das populações é nula. Ou seja, os indivíduo trocam de "grupos", sem acréscimo ou diminuição da população total (pessoas vão morrer, mas não vamos tirá-las da população total). Ou seja, num dia $t$ qualquer, teremos $s'(t)+i'(t)+r'(t)=0$. Sendo assim, obtemos a equação para descrever a evolução da população de indivíduos recuperados: $i'(t)=-s'(t)-r'(t)=cs(t)i(t)-bi(t)$.
Qual deve ser o valor de $i(0)$, ou seja, o número inicial de indivíduos infectados? Bom, alguém sempre é o chamado "paciente zero". Se começarmos com $i(0)=0$, então $i(t)$ será zero sempre. Iremos considerar que uma certa quantidade de pacientes infectados foi inserida na população, digamos $I(0)=d$, de doentes iniciais ($d$ é pequeno em relação à população $N$).
Chegamos finalmente ao nosso sistema de equações diferenciais, com suas condições iniciais (nosso PVI - problema de valor inicial):
lembrando que $c$ é o fator de contaminação (quantas pessoas um infectado contamina, em média), $b$ é a taxa com que as pessoas ficam boas, $d$ é o número inicial de doentes (doentes que são inseridos na população) e $N$ é a população total (pode-se pensar o fator $d/N$ como sendo uma única constante).
Este é um sistema de equações diferenciais não-lineares de primeira ordem. Este sistema não tem solução explícita, e seu estudo utilizando os métodos da teoria qualitativa dos sistemas dinâmicos é prejudicado (tecnicamente: a parte linear do sistema tem autovalores nulos). Vamos usar o Mathematica para ver como são as soluções, principalmente o gráfico de $i(t)$, que descreve como será a evolução do número de infectados.
Iremos usar $c=2,2$ (o que parece indicar a literatura médica sobre o caso atual), $b=1/3$ (valor comum em viroses) e $d=5$ (supondo 5 pacientes introduzidos numa população de 1 milhão de pessoas). O gráfico de $i(t)$ está na figura abaixo. Note que existe um pico de infectados, afetando quase metade da população, em pouco tempo.
O gráfico de $s(t)$, que mostra a evolução da população suscetível, está abaixo. Como esperado, ela começa bem grande e diminui rapidamente, até não existir quase ninguém suscetível ao contágio (quando quase todos já tiverem sido infectados).
O número de recuperados também tem crescimento rápido, como pode ser visto no gráfico de $r(t)$ abaixo. Este modelo só funciona para vírus de baixa letalidade, cujas mortes não tem grande impacto na ordem de magnitude da população original.
O primeiro gráfico foi feito considerando o valor de 2.2 para o R naught. Agora imagine que cada pessoas infectada não consiga contaminar tantas pessoas (por exemplo, tomando ações de quarentena, como por exemplo a suspensão de aulas e eventos, e isolando os doentes), e em média cada pessoa só consiga infectar no máximo uma pessoa. Neste caso o gráfico de $i(t)$ seria como abaixo.
Perceba que o percentual máximo de infectados diminui drasticamente (cai pela metade), e, além disto, leva-se mais tempo para atingir o máximo (por exemplo, permitindo aos sistemas de saúde que se preparem melhor para os atendimentos).
Conclusões
Enfim, o fato é que o número de infectados vai aumentar bastante de agora até o momento em que atingiremos o pico dos infectados, e depois disto irá diminuir. O importante é tomarmos medidas que evitem aglomerações, diminuindo o R naught, ainda que de forma forçada.
Se você não entendeu bem a matemática deste texto, dê mais uma chance para o gráfico abaixo. A curva em azul é o número de infectados com o R naught de 2.2, ou seja, sem medidas de quarentena. A curva vermelha é o número de infectados considerando o uso de medidas de quarentena.
Note que medidas de quarentena diminuem muito o pico da curva. Ou seja, boa parte de nós será infectado em algum momento, só não podemos ficar todos doentes no mesmo momento, ou o sistema de saúde entrará em colapso. Este texto trata disto e recomendo sua leitura.
Bônus
Mencionei que o índice R naught do sarampo é de aproximadamente 10. O que aconteceria com uma população sem vacina que fosse exposta ao sarampo? Este seria o gráfico de $i(t)$ para este caso:
Percebe-se um contágio muito mais rápido e atingindo 90% da população. Ou seja: o covid-19 é preocupante, mas muito mais preocupante são os movimentos obscurantistas como o anti-vacinas. Veja bem, terraplanismo também é uma loucura, mas pelo menos não dizimaria uma população (a curto prazo)..
Resumindo: lavem as mãos, sempre vacinem as crianças e não espirrem nos amigos! Só assim você estará contribuindo para a manutenção da raça humana aqui na Terra (seja ou não isto uma boa ideia..). Veja mais informações nesta página da Unicamp e também nesta página do CECOM/Unicamp.
Ps.: Versão atualizada com base em sugestões da Profa. Laura Rifo, Giovani Nascimento, Rita Santos, Leo Barichello e outros que eu devo ter esquecido. Obrigado por terem lido com detalhes!
Nesta última parte vou apresentar o que chamo de "melhores exemplos de integração entre matemática e arte" (o que pode ser exagerado, mas certamente são dois bons exemplos do uso da matemática como parte integrante e fundamental de uma pintura/gravura).
"Melancolia I", Albrecht Dürer, 1514
O primeiro deles é a gravura "Melancolia I", de Albrecht Dürer, de 1514. A gravura, supostamente, representa a melancolia gerada pela falta de novos trabalhos de Leonardo Da Vinci, que no fim da vida diminuiu o ritmo das produções (Monalisa foi iniciada em 1503 e em 1506 já estava terminada).
Melanconia I, de Albrecht Dürer (1514).
No canto superior direito de "Melancolia I" podemos ver um quadrado mágico:
Um quadrado mágico de dimensão $n$ é uma tabela com $n$ linhas e $n$ colunas com a propriedade de que a soma de qualquer uma de suas linhas ou de qualquer uma de suas colunas tem o mesmo valor.
Não existem quadrados mágicos 2x2 (consegue explicar?), mas existem quadrados mágicos 3x3, 4x4 e de todas as dimensões maiores.
Como podemos criar um quadrado mágico 3x3? Sejam $a,b,c,d,e,f,g,h,i$ os números de 1 a 9 em alguma ordem.
a
b
c
d
e
f
g
h
i
Se o quadrado acima é um quadrado mágico, então as somas das linhas e das colunas tem o mesmo valor, que iremos chamar de $k$, ou seja, $a+b+c=k$, $d+e+f=k$, $g+h+i=k$, $a+d+g=k$, $b+e+h=k$ e $c+f+i=k$, com a condição extra de que $a+b+c+d+e+f+g+h+i=45$ (já que $1+2+\ldots+9=45$.
Ora, das três primeiras equações sabemos que $a+b+c+d+e+f+g+h+i=3k$, portanto $3k=45$ e daí $k=15$. O que descobrimos? Que a soma das linhas (ou das colunas) de um quadrado mágico 3x3 precisa ser $15$, e isto facilita muito a construção de um deles. Afinal de contas, não é tão difícil descobrir de quantas formas podemos somar três números (naturais) e obter 15.
+
+
=
15
Estratégia: primeiro preencha o primeiro espaço com o 9. O segundo espaço terá que ser menor que 6, ou não sobrará nada para o terceiro espaço. Então preencha com o maior possível: 5. Resta preencher o terceiro espaço com 1. Então encontramos a primeira possibilidade: $9+5+1=15$.
Não é difícil obter todas as possibilidades:
$9+5+1=15$
$9+4+2=15$
$8+6+1=15$
$8+5+2=15$
$8+4+3=15$
$7+6+2=15$
$7+5+3=15$
$6+5+4=15$
Estas são as possibilidades para as linhas e colunas do quadrado mágico. Vamos tentar preencher o quadrado.
Vamos colocar a primeira combinação possível na primeira linha.
9
5
1
Antes de preencher a segunda linha, precisamos começar a pensar nas colunas. Como a primeira coluna precisa conter o 9, e só existe uma outra combinação contendo o 9, a primeira coluna deve preenchida como abaixo:
9
5
1
4
2
Para preencher a segunda coluna, só existe uma possibilidade, pois já temos um 5 na segunda coluna e o 2 já foi utilizado:
9
5
1
4
3
2
7
Agora ficou fácil terminar de preencher: a última coluna precisa conter 8 e 6, que são os números que faltam. A única possibilidade, para manter a soma 15, é a abaixo:
9
5
1
4
3
8
2
7
6
Essencialmente, este é o único quadrado mágico 3x3 (a menos de permutações de colunas/linhas). Que tal tentar fazer o mesmo para quadrados mágicos 4x4, como na gravura de Albrecht Dürer?
Uma dica: a soma de cada linha e de cada coluna, no caso 4x4, precisa ser 34. No caso geral, para quadrados mágicos $n\times n$, a soma precisa ser \[S=\frac{n(1+n^2)}{2}.\]
"Mental Arithmetic. In the Public School of S. Rachinsky", Nikolay Bogdanov-Belsky, 1895.
O segundo exemplo é "Mental Arithmetic. In the Public School of S. Rachinsky", de Nikolay Bogdanov-Belsky, de 1895.
"Mental Arithmetic. In the Public School of S. Rachinsky", de Nikolay Bogdanov-Belsky, de 1895
Repare na expressão escrita na lousa, que vamos denotar por $S$.
\[S=\frac{10^2+11^2+12^2+13^2+14^2}{365}.\]
Seria possível fazer esta conta mentalmente de forma rápida? Existem várias técnicas para realizar cálculos complicados mentalmente (sem auxílio de lápis/papel). Já faz algum tempo que estas técnicas não são mais ensinadas nas escolas, mas certamente no fim XIX ainda eram, como está bem retratado na pintura de Bogdanov-Belsky.
(Aliás, existe outro Bogdanov muito famoso em matemática, que junto com Takens, descobriu/explicou a Bifurcação de Bogdanov-Takens e cuja demonstração gera diagramas bem "artísticos".)
Vamos à conta. Algo que ajuda neste cálculo mental é separar as dezenas das unidades. Assim teremos
Eliminando o $13^2$ e o $14^2$ da conta, talvez esta fique mais fácil para as crianças da escola do Professor Rachinski. Como \[10^2+11^2+12^2=100+121+144=365,\] o resultado da conta no quadro só pode ser $S=2$ (o que já sabíamos).
Vamos pensar um pouco sobre a feliz coincidência
\[10^2+11^2+12^2=13^2+14^2.\] Temos 5 números consecutivos com a propriedade de que a soma dos quadrados dos três primeiros seja igual à soma dos quadrados dos dois últimos. O quão comum seria isto? Muito pouco.. de fato, as únicas soluções da equação
\[x^2+(x+1)^2+(x+2)^2=(x+3)^2+(x+4)^2\]
são $x=10$ e $x=-2$, portanto a única sequência, além de $10,11, 12, 13, 14$, com a propriedade acima é $-2,-1,0,1,2$, que é óbvio pela simetria.
Ps.: O segundo exemplo está muito bem descrito no livro "Álgebra recreativa", de I. Perelman, mas não foi lá que vi pela primeira vez. O primeiro exemplo é uma ilustração clássica presente em livros de matemática que falam sobre jogos e certa vez usei numa palestra para alunos de olimpíadas.
Uma velha anedota matemática diz que os números irracionais foram descobertos por um pupilo de Pitágoras chamado Hípaso de Metaponto (só para nos localizar no tempo, isto aconteceu por volta de 500 a.C.). Ao aplicar o teorema descoberto por seu mestre a um triângulo retângulo isósceles com catetos medindo 1, a hipotenusa deveria satisfazer à relação $h^2=2$, mas não existe número racional cujo quadrado seja igual a 2. Com isto, Hípaso havia descoberto um número irracional.
Mas Hípaso não se deu por satisfeito em descobrir um número irracional. Ao considerar divisões sucessivas de diagonais de um pentágono, ele provou que a razão entre a diagonal de um pentágono regular e seu lado é $\sqrt{5}$. O passo fundamental desta demonstração é estudar quando precisa medir um segmento AB que satisfaça à seguinte propriedade: existe um ponto P entre AB tal que $AB/AP=AP/PB$.
A divisão de um segmento em dois segmentos satisfazendo a esta proporção é conhecida como seção áurea de um segmento. A razão $AB/AP$ é chamada de número de ouro. É possível calcular explicitamente o valor desta razão: $$AB/AP=\displaystyle\frac{1+\sqrt{5}}{2}.$$
Como a existência de números irracionais não era algo bem aceito na época, e principalmente devido às suas existências supostamente contradizer o Teorema de Pitágoras, dizem o pupilo perdeu literalmente a cabeça.
Outro matemático, desta vez um italiano já no século XII também obteve o número de ouro de uma outra forma totalmente diferente. Considere a sequência numérica construída da seguinte forma: 1, 1, 2, 3, 5, 8, etc, onde cada termo é obtido somando os dois termos imediatamente anteriores. Esta é a chamada sequência de Fibonacci. Esta sequência tem várias aplicações "reais" e merecerá um dia um post inteiro sobre ela. Por exemplo, ela pode ser usada para calcular o número de ramificações de uma árvore. Se denotarmos por $f(n)$ o $n$-ésimo termo da sequência de Fibonacci, advinha o que acontece se fizermos o quociente $f(n)/f(n-1)$ para valores grandes de n?
Se você chutou que esta sequência (dos quocientes $f(n)/f(n-1)$) se aproxima do número de ouro, acertou. É possível provar isto matematicamente, mas vamos somente dar alguns exemplos:
Enquanto $$\frac{1+\sqrt{5}}{2}=1,61803398874989484...$$ temos que
$f(20)/f(19)=1,6180339631667065295$ e
$f(200)/f(199)=1,6180339887498948482.$
Formalmente, dizemos que $f(n)/f(n-1)$ tende a $\frac{1+\sqrt{5}}{2}$ quando $n\rightarrow\infty$ (o que significa $n$ tende ao infinito).
Voltando a falar sobre arte, onde aparece o número de ouro? Este artigo contém inúmeros exemplos. Quando as figuras envolvem construções arquitetônicas, outra figurinha sempre presente é o número de ouro. Em particular, retângulos áureos (que definiremos abaixo) costumam estar associados à "harmonia" e à beleza de objetos. O uso dos retângulos áureos em arquitetura é bem discutido neste artigo.
Existem alguns estudos (algumas referências neste link) que mostram que as mesmas áreas do cérebro que são ativadas ao ouvirmos uma boa música, ou ao apreciamos uma obra de arte ou ao estudarmos matemática.
Isto talvez signifique que o mesmo tipo de beleza que atribuímos a uma obra de arte ou a uma música possa ser atribuído a uma equação matemática. Disto isto, é quase um consenso que a equação
seja a mais bela delas. Dizem que esta equação é bonita por envolver algumas das constantes e símbolos matemáticos mais "importantes": a constante de Euler (e), o número pi, a unidade imaginária (i), os números inteiros 0 e 1 e os sinais + e =. Esta relação não é obtida de forma arbitrária, e é preciso alguma quantidade de matemática para poder deduzir esta equação.
Em breve, o terceiro e último post sobre o assunto!