quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Matemática na arte e arte na matemática - parte III

Nesta última parte vou apresentar o que chamo de "melhores exemplos de integração entre matemática e arte" (o que pode ser exagerado, mas certamente são dois bons exemplos do uso da matemática como parte integrante e fundamental de uma pintura/gravura).

"Melancolia I", Albrecht Dürer, 1514


O primeiro deles é a gravura "Melancolia I", de Albrecht Dürer, de 1514. A gravura, supostamente, representa a melancolia gerada pela falta de novos trabalhos de Leonardo Da Vinci, que no fim da vida diminuiu o ritmo das produções (Monalisa foi iniciada em 1503 e em 1506 já estava terminada).

Melanconia I, de Albrecht Dürer (1514).

No canto superior direito de "Melancolia I"  podemos ver um quadrado mágico:


Um quadrado mágico de dimensão $n$ é uma tabela com $n$ linhas e $n$ colunas com a propriedade de que a soma de qualquer uma de suas linhas ou de qualquer uma de suas colunas tem o mesmo valor.

Não existem quadrados mágicos 2x2 (consegue explicar?), mas existem quadrados mágicos 3x3, 4x4 e de todas as dimensões maiores.

Como podemos criar um quadrado mágico 3x3? Sejam $a,b,c,d,e,f,g,h,i$ os números de 1 a 9 em alguma ordem.

abc
def
ghi

Se o quadrado acima é um quadrado mágico, então as somas das linhas e das colunas tem o mesmo valor, que iremos chamar de $k$, ou seja, $a+b+c=k$, $d+e+f=k$, $g+h+i=k$, $a+d+g=k$, $b+e+h=k$ e $c+f+i=k$, com a condição extra de que $a+b+c+d+e+f+g+h+i=45$ (já que $1+2+\ldots+9=45$.

Ora, das três primeiras equações sabemos que $a+b+c+d+e+f+g+h+i=3k$, portanto $3k=45$ e daí $k=15$. O que descobrimos? Que a soma das linhas (ou das colunas) de um quadrado mágico 3x3 precisa ser $15$, e isto facilita muito a construção de um deles. Afinal de contas, não é tão difícil descobrir de quantas formas podemos somar três números (naturais) e obter 15.

++=15

Estratégia: primeiro preencha o primeiro espaço com o 9. O segundo espaço terá que ser menor que 6, ou não sobrará nada para o terceiro espaço. Então preencha com o maior possível: 5. Resta preencher o terceiro espaço com 1. Então encontramos a primeira possibilidade: $9+5+1=15$.

Não é difícil obter todas as possibilidades:
  • $9+5+1=15$
  • $9+4+2=15$
  • $8+6+1=15$
  • $8+5+2=15$
  • $8+4+3=15$
  • $7+6+2=15$
  • $7+5+3=15$
  • $6+5+4=15$
Estas são as possibilidades para as linhas e colunas do quadrado mágico. Vamos tentar preencher o quadrado.
  • Vamos colocar a primeira combinação possível na primeira linha.

951







  • Antes de preencher a segunda linha, precisamos começar a pensar nas colunas. Como a primeira coluna precisa conter o 9, e só existe uma outra combinação contendo o 9, a primeira coluna deve preenchida como abaixo:



9
5
1
4


2





  • Para preencher a segunda coluna, só existe uma possibilidade, pois já temos um 5 na segunda coluna e o 2 já foi utilizado:


951
43
27



  • Agora ficou fácil terminar de preencher: a última coluna precisa conter 8 e 6, que são os números que faltam. A única possibilidade, para manter a soma 15, é a abaixo:


951
438
276

Essencialmente, este é o único quadrado mágico 3x3 (a menos de permutações de colunas/linhas). Que tal tentar fazer o mesmo para quadrados mágicos 4x4, como na gravura de Albrecht Dürer?

Uma dica: a soma de cada linha e de cada coluna, no caso 4x4, precisa ser 34. No caso geral, para quadrados mágicos $n\times n$, a soma precisa ser \[S=\frac{n(1+n^2)}{2}.\]



"Mental Arithmetic. In the Public School of S. Rachinsky", Nikolay Bogdanov-Belsky, 1895.


O segundo exemplo é "Mental Arithmetic. In the Public School of S. Rachinsky", de Nikolay Bogdanov-Belsky, de 1895.

"Mental Arithmetic. In the Public School of S. Rachinsky", de Nikolay Bogdanov-Belsky, de 1895

Repare na expressão escrita na lousa, que vamos denotar por $S$.
\[S=\frac{10^2+11^2+12^2+13^2+14^2}{365}.\]
Seria possível fazer esta conta mentalmente de forma rápida? Existem várias técnicas para realizar cálculos complicados mentalmente (sem auxílio de lápis/papel). Já faz algum tempo que estas técnicas não são mais ensinadas nas escolas, mas certamente no fim XIX ainda eram, como está bem retratado na pintura de Bogdanov-Belsky.

(Aliás, existe outro Bogdanov muito famoso em matemática, que junto com Takens, descobriu/explicou a Bifurcação de Bogdanov-Takens e cuja demonstração gera diagramas bem "artísticos".)

Vamos à conta. Algo que ajuda neste cálculo mental é separar as dezenas das unidades. Assim teremos

\[S=\frac{10^2+(10+1)^2+(10+2)^2+(10+3)^2+(10+4)^2}{365}.\]

Feito isto, e calculando com ajuda do binômio de Newton, teremos

\[S=\frac{10^2+(10^2+20+1) +(10^2+40+4) +(10^2+60+9) +(10^2+80+16)}{365}\]

Agrupando os termos mais parecidos, ficamos com 

\[S=\frac{10^2+10^2+10^2+10^2+10^2+(20+40+60+80)+(1+4+9+16)}{365}\]

Portanto
\[S=\frac{500+200+30}{365}=\frac{730}{365}=2.\]

Este problema tem uma outra solução que revela uma propriedade interessante:
\[10^2+11^2+12^2=13^2+14^2\]

Assim sendo, 
\[S=\frac{10^2+11^2+12^2+13^2+14^2}{365}=\frac{2(10^2+11^2+12^2)}{365}\]

Eliminando o $13^2$ e o $14^2$ da conta, talvez esta fique mais fácil para as crianças da escola do Professor Rachinski. Como \[10^2+11^2+12^2=100+121+144=365,\] o resultado da conta no quadro só pode ser $S=2$ (o que já sabíamos).

Vamos pensar um pouco sobre a feliz coincidência
\[10^2+11^2+12^2=13^2+14^2.\] Temos 5 números consecutivos com a propriedade de que a soma dos quadrados dos três primeiros seja igual à soma dos quadrados dos dois últimos. O quão comum seria isto? Muito pouco.. de fato, as únicas soluções da equação

\[x^2+(x+1)^2+(x+2)^2=(x+3)^2+(x+4)^2\]

são $x=10$ e $x=-2$, portanto a única sequência, além de $10,11, 12, 13, 14$, com a propriedade acima é $-2,-1,0,1,2$, que é óbvio pela simetria.

Ps.: O segundo exemplo está muito bem descrito no livro "Álgebra recreativa", de I. Perelman, mas não foi lá que vi pela primeira vez. O primeiro exemplo é uma ilustração clássica presente em livros de matemática que falam sobre jogos e certa vez usei numa palestra para alunos de olimpíadas.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Matemática na arte e arte na matemática - parte II


O número de ouro

Uma velha anedota matemática diz que os números irracionais foram descobertos por um pupilo de Pitágoras chamado Hípaso de Metaponto (só para nos localizar no tempo, isto aconteceu por volta de 500 a.C.). Ao aplicar o teorema descoberto por seu mestre a um triângulo retângulo isósceles com catetos medindo 1, a hipotenusa deveria satisfazer à relação $h^2=2$, mas não existe número racional cujo quadrado seja igual a 2. Com isto, Hípaso havia descoberto um número irracional.

Mas Hípaso não se deu por satisfeito em descobrir um número irracional. Ao considerar divisões sucessivas de diagonais de um pentágono, ele provou que a razão entre a diagonal de um pentágono regular e seu lado é $\sqrt{5}$. O passo fundamental desta demonstração é estudar quando precisa medir um segmento AB que satisfaça à seguinte propriedade: existe um ponto P entre AB tal que $AB/AP=AP/PB$.


A divisão de um segmento em dois segmentos satisfazendo a esta proporção é conhecida como seção áurea de um segmento. A razão $AB/AP$ é chamada de número de ouro. É possível calcular explicitamente o valor desta razão: $$AB/AP=\displaystyle\frac{1+\sqrt{5}}{2}.$$

Como a existência de números irracionais não era algo bem aceito na época, e principalmente devido às suas existências supostamente contradizer o Teorema de Pitágoras, dizem o pupilo perdeu literalmente a cabeça.

Outro matemático, desta vez um italiano já no século XII também obteve o número de ouro de uma outra forma totalmente diferente. Considere a sequência numérica construída da seguinte forma: 1, 1, 2, 3, 5, 8, etc, onde cada termo é obtido somando os dois termos imediatamente anteriores. Esta é a chamada sequência de Fibonacci. Esta sequência tem várias aplicações "reais" e merecerá um dia um post inteiro sobre ela. Por exemplo, ela pode ser usada para calcular o número de ramificações de uma árvore. Se denotarmos por $f(n)$ o $n$-ésimo termo da sequência de Fibonacci, advinha o que acontece se fizermos o quociente $f(n)/f(n-1)$ para valores grandes de n?

Se você chutou que esta sequência (dos quocientes $f(n)/f(n-1)$) se aproxima do número de ouro, acertou. É possível provar isto matematicamente, mas vamos somente dar alguns exemplos:

Enquanto
$$\frac{1+\sqrt{5}}{2}=1,61803398874989484...$$
temos que

  • $f(20)/f(19)=1,6180339631667065295$ e
  • $f(200)/f(199)=1,6180339887498948482.$


Formalmente, dizemos que $f(n)/f(n-1)$ tende a $\frac{1+\sqrt{5}}{2}$ quando $n\rightarrow\infty$ (o que significa $n$ tende ao infinito).

Voltando a falar sobre arte, onde aparece o número de ouro? Este artigo contém inúmeros exemplos. Quando as figuras envolvem construções arquitetônicas, outra figurinha sempre presente é o número de ouro. Em particular, retângulos áureos (que definiremos abaixo) costumam estar associados à "harmonia" e à beleza de objetos. O uso dos retângulos áureos em arquitetura é bem discutido neste artigo.

  
Razões áureas na Monalisa, como visto aqui, e no Taj Mahal.

A beleza puramente matemática

Existem alguns estudos (algumas referências neste link) que mostram que as mesmas áreas do cérebro que são ativadas ao ouvirmos uma boa música, ou ao apreciamos uma obra de arte ou ao estudarmos matemática. 

Isto talvez signifique que o mesmo tipo de beleza que atribuímos a uma obra de arte ou a uma música possa ser atribuído a uma equação matemática. Disto isto, é quase um consenso que a equação 


seja a mais bela delas. Dizem que esta equação é bonita por envolver algumas das constantes  e símbolos matemáticos mais "importantes": a constante de Euler (e), o número pi, a unidade imaginária (i), os números inteiros 0 e 1 e os sinais + e =. Esta relação não é obtida de forma arbitrária, e é preciso alguma quantidade de matemática para poder deduzir esta equação.

Em breve, o terceiro e último post sobre o assunto!

Ps.: Aprendi recentemente neste post do Baricentro da Mente a usar LaTeX em posts do Blogger, o que facilitou muito minha vida.