terça-feira, 14 de setembro de 2021

Saúde mental, matemática e a relação professor-aluno

Estamos no "Setembro Amarelo" e depois de alguma reflexão, decidi escrever este texto.

Minha graduação foi em bacharelado em matemática. Entramos 30 e saímos alguns, talvez metade - e foi um percentual bom. Durante a graduação, passamos por alguns momentos bem ruins. Lembrando deles hoje, percebo que alguns foram muito absurdos.

Um dos meus professores nunca corrigia provas e parecia dar notas aleatoriamente, com notas altas para os alunos que ele gostava. Ele aplicava as provas e na outra aula ficava 50 minutos dizendo como nós fomos ruins e que aquelas não eram provas de alunos que queriam ser matemáticos. Não devolvia as provas, dizendo que todos foram ruins. Uma certa vez, eu pedi pra ver minha nota mesmo com as ameaças. Ele fez a famosa pergunta "Tem certeza? Se eu corrigir sua prova, sua nota vai ser aquela." Pois eu pedi. E a nota foi 4,0. E minha prova estava muito boa, merecia ali no mínimo um 8,0. No fim, por algum motivo este professor parecia gostar de mim, e mesmo após esta "insubordinação", me deixou fazer a "nova prova" com a turma. E, confesso: tirando estes comportamentos, dando aula este professor era muito bom. As aulas eram boas mesmo e aprendi muita coisa.

As condições financeiras da minha família na época eram difíceis e eu não podia ficar reprovando em disciplinas. Precisava do dinheiro da monitoria e da iniciação científica, ou corria o risco de não conseguir terminar meus estudos. Ou seja: parei de contestar este tipo de coisa. O risco era alto. Terminar o curso era um problema de otimização: terminar no menor tempo, com notas razoáveis para fazer um mestrado e gastando a menor quantidade de dinheiro possível.

Um outro professor, numa aula de exercícios antes da prova, não conseguiu fazer a um dos exercícios que a turma pediu. Ele enrolou, enrolou e não conseguiu fazer. Chegou na prova, quem estava lá? O exercício que o professor não tinha conseguido fazer. Segundo ele: "Nossa, ontem de noite eu consegui fazer, daí resolvi colocar na prova pra vocês verem como é fácil". Na saída a prova, uma amiga me perguntou como eu tinha ido, e eu falei: "Fui mal, claro, mas também nem este %%%%%%% sabe fazer esta prova". O professor ouviu o xingamento e depois disto eu fui reprovado no curso (a única reprovação da turma). Minhas notas nunca passaram de 5 com questões anuladas por simplesmente nenhum motivo - tive uma questão de integração toda cancelada porque eu não coloquei um "+c" - e, no caso, era uma integral definida, ou seja, não tinha constante de integração. Mas não adiantava reclamar. Os outros professores, inclusive, sabiam da fama deste professor, mas não faziam nada.

Fiz mais dois cursos com este professor: no curso de Análise ele dava aula de exercícios de olho no gabarito do Elon, e mesmo assim não conseguia fazer as questões. Confesso que a gente até fazia piada com isto e pedíamos os exercícios difíceis que a gente já sabia resolver, só pra ver ele se enrolar (afinal, estavam na lista que ele tinha passado). Ele tirava ponto de quem não usava α para notação de ínfimo e para quem não multiplicava matrizes, ainda que fossem 2x2, usando explicitamente a regra de Kronecker. No outro curso que fiz com ele eu passei com uma nota razoável, e fui o único da turma que não ficou de exame. No dia do exame, ele ainda pergunta: "Ah, você está aqui? Não quer fazer o exame pra melhorar a nota?" Sabendo que ele sempre diminuia a nota de quem fizesse prova substitutiva, só dei um sorrisinho - e saí correndo.


Uma coisa que estamos acostumados a dizer é que "matemática é difícil mesmo", ou então "ah, todo mundo aqui passou pelas mesmas experiências e tá todo mundo aí, tranquilo". Todos quantos? Quantos que, ao passar por todas estas experiências, querem continuar neste meio, ou tem ânimo para continuar a graduação, ou ir para a pós-graduação? [e aqui vai uma recomendação da Netflix: The Chair; depois de assistir, você ainda vai querer seguir carreira acadêmica?]

Você não vai ao dentista com uma cárie e ele diz: "Nossa, este é o dente mais sujo que já vi, credo". Ou então "melhor seria arrancar todos os seus dentes, você não serve pra ter dente". Já pensou ir à médica por conta da hipertensão e ela falar "ah, vai morrer mesmo, nem gaste seu dinheiro comprando remédio". Como podemos, então, fazer isto com nossos alunos? Não faz sentido ficar falando para os alunos que "se você tirou menos que 4 nesta prova, não será um bom professor no futuro". Com grande probabilidade ele vai sim, e eu pelo menos não vejo vantagem em ter futuros colegas de profissão que me achem um babaca.

Mas enfim, este é o ambiente em que a maioria de nós, professores universitários de matemática fomos "criados". É como criar uma criança num ambiente violento: ela vai bater nos amiguinhos de sala. Não é por maldade, é por achar que aquilo é "legal". É difícil sair desta bolha, já que sempre vai existir o aluno que ri da piadinha (às vezes o famoso "rindo de nervoso"), e daí o ego fica alimentado e o ciclo recomeça.

De forma alguma estou passando pano pra professor sem noção, mas sim tentando dizer que as pessoas precisam receber feedback sobre as coisas erradas que elas fazem, antes que seja muito tarde pra isto. Na primeira situação inapropriada, é preciso que o professor saiba que certo comentário foi inapropriado - e este recado pode ser dado ao coordenador de curso pelo representante discente, por exemplo, para evitar certos constrangimentos.

Isto não é fácil, e pode ser uma experiência frustrante, já que em geral, ficamos com a impressão de que "nunca dá em nada". E sim, isto às vezes é verdade, principalmente pela expectativa do nosso "dar em alguma coisa", e aí entramos numa questão de "dosimetria da pena". Às vezes "deu em alguma coisa", nem que seja para melhorar outro colega. Existe gente que assim mesmo e não vai mudar, e a estes a instituição deve dar uma resposta, mas também existe muita gente legal que só tá seguindo o caminho errado, e pode melhorar com uma conversa franca.

Saber exatamente quais exemplos seguir às vezes é confuso e a gente erra. Eu entrei na Unicamp como professor em 2012. Nos primeiros cursos que lecionei, principalmente para turmas grandes, eu fazia um comentário bastante inadequado sobre a série histórica do percentual de aprovados/reprovados da disciplina. Acho que alguém me disse que fazia isto, e eu achei uma boa ideia. A tentativa era, no meu entendimento da época, "nobre": alertar os alunos sobre a dificuldade do curso e que eles deveriam levar a sério.



Agora, será que faz mesmo diferença o aluno saber, logo na primeira aula do curso, que naquela disciplina o índice de reprovação é de 30%? Isto tem mesmo impacto sobre o ritmo de estudo do aluno, ou será que só serve para gerar um pânico? Aliás, acho que é uma informação que eles já recebem dos seus veteranos, não é algo que o docente precisa enfatizar. Hoje tenho certeza de que este tipo de comentário não ajuda em nada e tenho receio de que estes comentários possam ter feito alguém desistir da disciplina ou algo assim, pela pressão que coloca no aluno. Peço desculpas a quem foi meu aluno nesta época e ouviu algo parecido com isso. Resumindo, era um comentário babaca. [Nota: Nesta época, minha nota no GDE, uma espécie de sistema paralelo de avaliação de docentes da Unicamp, era bem baixa, e eu não entendia o motivo. Bom, isto aí deve ser um deles. ]


Algumas coisas mudaram minha opinião e meu modo de agir. Além das chamadas à realidade que sempre recebo de minha esposa, também professora de matemática, e que sempre me lembra que tenho na Unicamp grande parte dos melhores estudantes do Brasil, me recordo de outros três motivos:

Uma delas foi o texto Como Desestimular os Bons Alunos, escrito pelo Prof. Mário Martinez, hoje professor emérito da Unicamp. Se você ler este texto e se reconhecer em alguma das coisas, então algo está muito errado e você deveria repensar a forma como está lidando com alunos. Hoje eu deixo um link para este texto no meu site, para que sempre me lembre. Mais recentemente, o livro Conversas com um jovem professor, do Karnal, causou o mesmo efeito em mim. Deveria ser leitura obrigatória para docentes, do ensino fundamental à pós-graduação.

Outra coisa que ajudou a mudar a forma como eu dou aula foi a experiência como coordenador de graduação. Ali eu tive contato com realidades muito diferentes da minha, na época de estudante. Pode não ser um fenômeno que acontece com todos os coordenadores, mas no meu caso eu entrei achando que estava num mundo colorido e tomei um choque de realidade. Se um aluno pede reingresso após reprovar em todas as disciplinas no 1o semestre, pode ser difícil para alguns compreender como isto é possível, e me incluo aqui. Isto não fazia parte da minha realidade de estudante. Felizmente tive alguns alunos nesta situação que me explicaram de forma bem didática e educada como é sim possível. Daí que a gente percebe como a universidade é diversa. A gente deixa de achar que questões sobre saúde mental dos estudantes são frescura para ter a percepção que estamos praticamente numa epidemia.

Uma terceira experiência que contribuiu para minha mudança foi lecionar a disciplina de estágio para a licenciatura em matemática. Fui responsável pelo curso por 2 semestres seguidos e foi uma das melhores coisas que eu fiz. Você passa a ter contato com um outro mundo, o dos alunos que passam perrengues nos estágios, sendo professores. E mais uma vez eu tive a sensação de que não tinha como ajudar, nem mesmo como aconselhar, pois aquela realidade estava muito distante da minha. Não sei se os cursos foram bons para eles, mas para mim foram muito bons. Hoje todos já são colegas de profissão, e fico muito feliz cada vez que encontro com algum deles na colação de grau. Eu ensinei alguma coisa pra eles, mas eles me ensinaram bem mais.


Acho que melhorei um pouco como professor nos últimos anos ao descobrir que copiar boas experiências que os colegas tem feito não é feio, e é até recomendável.

É o colega que dá bis para os alunos, o outro que faz uma competição de problemas, o que usa o Kahoot! para animar as aulas, que troca a referência bibliográfica por outra que seja mais adequada a este século e não exista só um exemplar datilografado na biblioteca. Na dúvida, existem excelentes livros, blogs, etc sobre ensino-aprendizagem de matemática, mesmo em nível superior. Durante o ensino remoto, nós docentes fizemos várias reuniões para nos ensinar a lidar com as tecnologias. Talvez seja hora de criar um fórum permanente sobre questões envolvendo a relação professor-aluno e ensino-aprendizagem.

Antes de olhar torto e pensar que qualquer coisa diferente do que era feito 60 anos atrás só vai servir para "facilitar a vida dos alunos", é preciso refletir sobre as experiências. Felizmente, o que mais tem no IMECC (e em outros lugares) é gente fazendo coisas legais sobre como ensinar matemática e no entendimento sobre a melhor forma de fazer acontecer a uma relação saudável professor-aluno.

A relação professor-aluno precisa ser cordial. Ela é sim desigual e existe uma hierarquia, mas, usando uma palavra da moda, devemos trazer uma boa dose de empatia para esta relação.

Aos alunos que estão lendo isto, gostaria que pedir que não se acomodem, e lutem para que a relação professor-aluno seja adequada para ambos os lados. O período que vocês passam na universidade não deveria ser lembrado no futuro como tendo sido traumático. Cobrem uma resposta institucional. Para nós docentes, acho que está na hora da gente começar a entrar nesta briga do lado de quem tá certo, ou então não adianta ficar fazendo post de apoio em blog.

Bom, este texto não tem objetivo claro, nem uma conclusão. E, infelizmente, ele não apresenta muitas soluções, no máximo algumas sugestões. Mas acho que agora é um bom momento para deixá-lo aqui no blog e, se alguém quiser conversar sobre qualquer uma desta questões, mande um e-mail ou apareça na minha sala (quando acabar a pandemia!).

Um comentário:

  1. A gente acaba se identificando com os relatos, principalmente pelo trauma que tivemos na graduação. E sim, muitos de nós, reproduzindo os abusos. Toda reflexão é necessária! Precisamos falar sobre isso. Obrigada pelo texto.

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