sábado, 1 de março de 2025

Conselhos sobre cartas de recomendação

Existem basicamente três tipos de cartas de recomendação: I – as que não servem para nada, II – as que te desqualificam e III – aquelas que são úteis para seja lá qual for o seu propósito (inscrição para estágio, mestrado, doutorado, intercâmbio, emprego, etc).

Por algum tempo eu sempre aceitei escrever cartas de recomendação para quem quer que fosse, por achar que a escolha de quem vai te recomendar é parte do processo seletivo – você precisa ter alguma ideia sobre a impressão que as pessoas tem sobre você. Continuo achando isto, mas o problema com isto é que algumas cartas acabam caindo no tipo I ou II. Cartas do tipo I consomem tempo precioso das comissões de seleção sem serem úteis no processo; cartas do tipo II são ruins para o candidato e, já que o conteúdo das cartas costuma ser sigiloso, não acho adequado escrevê-las.

Se você me pediu uma carta de recomendação, provavelmente eu te mandei para este página para que você tenha certeza se eu sou a pessoa certa para te recomendar. Mesmo que não seja o caso, pense nas seguintes questões sobre a pessoa para quem você pede uma carta de recomendação:

  1. Eu sei quem é você?
  2. Uma carta minha é mesmo relevante para o que você precisa?
  3. Será que eu tenho uma boa impressão sobre você?

Sobre (1), você deve ter sido meu aluno ou então nos conhecemos em outra oportunidade/projeto. Como isto pode ter acontecido alguns semestres atrás, me mande seu histórico ou me atualize sobre o que você tem feito desde então. Pode ser um parágrafo – não quero saber se você adotou um gato, mas seria bom saber se você fez um intercâmbio no exterior ou algo assim. Se você foi meu orientando, esta pergunta está automaticamente respondida – sim, eu sei quem você é.

Sobre (2), é bastante claro em alguns casos (meus ex-alunos do curso de matemática que estejam aplicando para pós-graduação), mas não é tão claro em outros. Se você fez uma disciplina no 1o semestre da graduação comigo, no meio de uma centena de alunos, e está querendo um estágio na sua área de atuação, talvez eu não seja adequado para escrever a carta. Avalie isto. A carta de orientadores/ex-orientadores costuma ser relevante, então se é seu caso, está resolvido.

Sobre (3), é um tanto subjetivo e mais complicado. Os pré-requisitos básicos são os óbvios: se você foi meu aluno, deve ter sido aprovado no curso com uma boa nota: pelo menos B ou uma nota acima de 7,0. Em turmas grandes, pode ser que eu não me lembre de todos os alunos, mas se você foi um aluno participativo (participava da aula, tirava dúvidas depois, mandava dúvidas por e-mail, etc) certamente me lembrarei positivamente de você. Como regra, algo que costuma funcionar é: se você se lembra de mim, provavelmente vou me lembrar de você. Se você não foi tão bem no curso, mas teve uma boa evolução de lá pra cá, talvez também eu possa escrever uma boa carta.

Se você acha que está dentro dos critérios acima, certamente poderei escrever uma carta de recomendação para você – e aceito ajuda para isto. Se existe algum ponto em particular que você gostaria que eu abordasse, me informe. Me mande também cópia do seu histórico/integralização/qualquer coisa que possa ajudar. Ah! E não deixe de me enviar um lembrete por e-mail faltando um ou dois dias para o prazo final.


Este texto foi inspirado num texto parecido no site do Prof. Ravi Vakil (que linka para os sites de Keith ConradMegumi HaradaRob Pollack e Tom Roby)

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Dicas sobre como estudar matemática

Os tópicos abaixo não nenhum embasamento científico, são só dicas baseadas em minha experiência pessoal.

Como estudar agora que você está na universidade

  • O ritmo de estudo na universidade é bem diferente do que era na escola. É provável que você tenha sido aquele aluno muito bom, sem que para isto tenha precisado estudar muito. Na universidade, isso pode não funcionar.
  • (Princípio básico) Sua saúde (física e mental) é muito mais importante do que essa disciplina e esse curso. Fazer uma disciplina não deve fazer você se sentir mal.
  • Não menospreze o impacto que questões envolvendo saúde mental tem no seu desempenho acadêmico! Se achar que precisa de ajuda, ou se achar que um amigo precisa de ajuda, procure apoio! Se precisar de atendimento especializado, a Unicamp tem setores de apoio aos alunos, tais como o SAE – Serviço de Apoio ao Estudante e o SAPPE – Serviço de Assistência Psicológica e Psiquiátrica.
  • Além destes conselhos despretensiosos, existe muito material profissional de apoio. O SAE/Unicamp oferece várias vezes no ano a “Oficina de Autorregulação da Aprendizagem”. Se informe sobre isto com um amigo, centro acadêmico, ou com um professor. Não temos muito treinamento para lidar com isso, mas acho que qualquer um pode te falar sobre o SAE/Sappe.
  • Recomendo também a leitura do livro “Cartas do Gervásio ao Seu Umbigo”, sobre como estudar na universidade (tem na biblioteca da FE).

Como estudar/aprender matemática?

A lista abaixo não serve para todo mundo. Ensino/Aprendizagem é algo complexo e muito individual. Mas já que você leu até aqui, vamos continuar.

  • Como não estudar matemática: assim como várias outras coisas no mundo, não dá para aprender matemática simplesmente olhando alguém fazer. Matemática se aprende com lápis e papel. Tem que ir rabiscando e fazendo exemplos até a coisa toda fazer sentido. E às vezes isto demora bastante. Um livro de matemática raramente serve como livro de cabeceira: no máximo você terá alguns pesadelos.
  • Temos lousas no IMECC, e muitas salas vazias. Chame um colega e vá lá discutir algum problema.
  • Só decore as fórmulas após entender como elas funcionam. Você pode ter decorado a fórmula de Clapeyron, mas você ainda sabe o que é o RT na equação 𝑃𝑉=𝑛𝑅𝑇? (Químicos, não respondam). Se você fizer vários exercícios que utilizam uma determinada fórmula (digamos, integração por partes), uma hora irá transformar o “decorei” em “aprendi”.
  • Um dos grandes problemas da matemática é que é uma disciplina cumulativa. Você precisa aprender coisas que foram “inventadas” no século XI (por exemplo, a fórmula de Bháskara) para acompanhar as técnicas de cálculo diferencial e integral desenvolvidas no século XVIII e depois para estudar o desenvolvimento dos sistemas dinâmicos não-suaves que tem sido feito desde o começo deste século. Na medicina, você não precisa necessariamente conhecer os métodos do século XIV para entender o que é feito hoje, mas na matemática você precisa.
  • Se existem coisas mais modernas em matemática, qual o sentido de estudarmos as coisas “velhas”? As coisas modernas são complicadas e dependem deste conhecimento anterior. Quer entender como é possível comprimir uma foto em .jpg ou um arquivo de áudio em .mp3? Quer saber como um foguete pode subir, colocar uma nave em órbita e pousar novamente num ponto determinado? Vai ter que estudar transformadas de Fourier, teoria do controle e algumas coisas desenvolvidas no século XVIII, além de muitas coisas “teóricas”.
  • Em geral, sua dificuldade com integrais tem origem na sua dificuldade em, por exemplo, dividir polinômios ou expandir corretamente expressões como (𝑥+𝑦)𝑛, ou ainda em somar frações. Não é “feio” que você não saiba algo, e é muito importante que você cubra seus pré-requisitos. Não tenha vergonha de pegar um livro de Pré-Cálculo e dar uma estudada. O mesmo vale para quem está fazendo Topologia Diferencial: não tenha vergonha de lembrar algum conceito de Espaços Métricos.
  • O nível de dificuldade de um problema de matemática pode aumentar muito rapidamente. Por exemplo, você consegue encontrar números inteiros positivos x, y, z com 𝑥2=𝑦2+𝑧2? E inteiros positivos x, y, z de forma que 𝑥3=𝑦3+𝑧3? Será que existem?

Durante uma aula (especificamente durante minha aula)

  • Tente ler, pelo menos “por alto” o assunto que será tratado na aula, nem que seja para ter uma ideia.
  • Passeie na biblioteca na prateleira onde fica o livro oficial do curso, e procure outros livros sobre o mesmo assunto. Você pode se dar melhor com um livro que não seja a referência oficial do curso. Além disso, ler coisas por outros pontos de vista pode ser interessante.
  • Os slides ou notas de aula que eu usar no curso estarão sempre disponíveis e atualizados em meu website, então você não precisa copiar tudo que eu escrevo no quadro. Copie só o que for o importante (comentários, soluções de exercícios, piadinhas, etc).
  • Faça perguntas durante a aula, participe da aula. Eu raramente faço perguntas retóricas.
  • Modere o uso do seu celular durante a aula. Use este momento para se “desintoxicar” de redes sociais, estamos todos precisando fazer isto.
  • Não tenha vergonha de perguntar. Se não quiser perguntar durante a aula, fale comigo no final da aula, ou me mande um e-mail, ou passe na minha sala. Sua dúvida pode ser a dúvida do colega que é ainda mais tímido do que você. Não se intimide com os colegas que fazem perguntas complicadas.
  • Tente fazer as listas de exercícios, principalmente os exercícios que eu deixar durante as aulas.
  • A aula de exercícios/do PED é muito importante para você acompanhar o curso. Além disto, existem horários de monitorias em vários dias. Não frequente a monitoria só na véspera da prova.
  • A sua participação e seu trabalho individual são fundamentais para seu sucesso na disciplina. Entretanto, estudar em grupo é uma excelente estratégia para adquirir conhecimento.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

142857 e outros números interessantes

(Publicado originalmente em: https://matecaemtudo.blogspot.com/2021/03/142857-e-outros-numeros-interessantes.html)

Matemáticos em geral odeiam ser comparados com calculadoras humanas. Quer irritar um matemático? Pergunte se ele sabe fazer multiplicações de forma rápida. Eu sempre digo que sim, sei multiplicar números grandes bem rápido, desde que um deles seja 0 ou que não se faça questão do resultado estar correto.

Dito isso, sugiro que você pegue uma calculadora para acompanhar esse post - e conferir minhas contas!

Srinivasa Ramanujan (Foto da Wikipedia).


O matemático Srinivasa Ramanujan, cuja história foi retratada no filme O Homem que Viu o Infinito e também neste episódio da série Ancient Aliens do History Channel (sim, muita gente acredita que Ramanujan veio de outro planeta), provavelmente odiaria o título deste post: ele não acreditava que existissem números não-interessantes e, ao sugerir que $142857$ é um número interessante, talvez eu esteja querendo dizer que existem números não-interessantes.

Aliás, a história que comecei a mencionar no parágrafo anterior é muito boa e vale ser contada novamente. O matemático inglês G. H. Hardy, ao visitar Ramanujan num hospital, talvez para iniciar uma conversa, comentou que a placa do taxi que o levou até ali era o número menos interessante que ele conhecia: $1729$. Rapidamente, Ramanujan retrucou que $1729$ era sim um número muito interessante: ele é o menor número que pode ser expresso como soma de dois cubos de duas formas diferentes.

Esta história parece uma anedota folclórica, mas foi o Hardy que deixou-a registrada neste livro; especificamente:

I remember once going to see him when he was ill at Putney. I had ridden in taxi cab number 1729 and remarked that the number seemed to me rather a dull one, and that I hoped it was not an unfavourable omen. "No," he replied, "it is a very interesting number; it is the smallest number expressible as the sum of two cubes in two different ways."

De fato, $1729=9^3+10^3$ e existe outra decomposição na forma $1729=a^3+b^3$, mas vamos deixar como exercício (dica: $a,b$ são números inteiros com $1\leq a,b\leq 12$) e nenhum outro número natural menor que $1729$ pode ser decomposto desta maneira de duas formas distintas. No entanto, ele não é único: você consegue mostrar que 4104 também pode ser escrito, de duas formas diferentes, como soma de dois cubos? Depois que pensar um pouco, confira a resposta neste texto aqui. 

Enfim, deixando o também interessante número $1729$ de lado, vamos voltar ao personagem do título, o $142857$. Vamos começar com sua "tabuada":

  • $142857\times 1=142857$
  • $142857\times 2=285714$
  • $142857\times 3=428571$
  • $142857\times 4=571428$
  • $142857\times 5=714285$
  • $142857\times 6=857142$
  • $142857\times 7=999999$
  • $142857\times 8=1142856$
  • $142857\times 9=1285713$
O que há de interessante nisto? Ora, multiplicar $142857$ por $1$, $2$, $3$, $4$, $5$ ou $6$ simplesmente rearranja seus dígitos! Isso é fantástico! Quando multiplicamos por $7$ acontece algo estranho, e quando multiplicamos por 8 ou 9 acontece quase uma permutação dos dígitos - apesar de que o número de dígitos aumenta.

Podemos perceber ainda que $142857\times 8={\bf 1}14285{\bf 6}$, e se trocarmos o último $6$ de $1142856$ pela soma do primeiro $1$ e o último $6$ de  pela soma $1+6=7$, obteremos novamente o número $142857$. Que tal conferir como isso acontece com outros múltiplos? Tá bom, vou fazer mais um para vocês: $142857\times 9=12857{\bf 13}$. Falta um quatro né? Percebeu de onde vem o 4 faltante? Da soma do 1 com 3 no final!

Continuando, você vai chegar na conta $142857\times 14$, e terá como resposta $1999998$. Pronto, assim como quando multiplicamos por 7, aqui estão vários 9's.. vamos entender esse fenômeno? 

Se considerarmos a expansão decimal de 1/7, teremos uma dízima periódica: $$\dfrac{1}{7}=0,142857142857142857...$$ Se multiplicarmos a equação acima por 7, do lado esquerdo obteremos $1$, e do lado direito, obteremos uma expansão decimal infinita do 1, resultando na famosa igualdade $$1=0,999999999...$$

Números com a propriedade do $142857$ são chamados de números cíclicos. Nosso amigo $142857$ é o exemplo mais conhecido de número cíclico na base 10. A definição precisa é a seguinte: um número de $(n-1)$-dígitos é chamado de cíclico se o resultado de sua multiplicação por $1, 2, \ldots, n-1$ produz os mesmos dígitos, em ordem diferente.

Uma forma de gerar números cíclicos é considerar expansões decimais de frações do tipo $1/p$, em que $p$ é um primo (não funciona para todo primo!). Agora um exercício difícil: verifique que 0588235294117647 é um número cíclico, verificando que os primeiros 16 múltiplos de 0588235294117647 (não esqueça do $0$ inicial, ele é importante!) são permutações do número inicial.

Confira esse vídeo do Numberphile sobre números cíclicos (o vídeo está em inglês, mas o YouTube consegue colocar legendas em português automaticamente):


Veja na "Enciclopédia de Sequências de Inteiros" alguns outros números cíclicos neste link.

Uma pitada de "pessoalidade" nessa história: a propriedade mágica do 142857 foi uma das primeiras curiosidades matemáticas que eu lembro de ter aprendido. Quem me ensinou foi meu pai, Djalmas, que é advogado (será que isso era ensinado em cursos de direito?). Se bem que Fermat, o famoso matemático, também era advogado..


sexta-feira, 1 de março de 2024

Como procurar uma iniciação científica

Nota importante: este tutorial tem mais chance de funcionar se você for aluno(a) do curso de matemática.

1. O que é iniciação científica?

Este tutorial é sobre como procurar uma iniciação científica, então imagino que você já saiba o que é uma ic. Em todo caso, uma definição rápida pode ser: é uma espécie de estágio/estudo dirigido que você faz, orientado por um professor/pesquisador. Isso auxilia muito na sua formação como pesquisador(a), pois as disciplinas nem sempre dão conta de assuntos atuais. Será seu primeiro contato com o método científico, com o laboratório (quando for o caso), etc.

2. Não procure uma iniciação científica se você está no primeiro semestre da graduação.

O passo 1 é muito importante, e ele tem somente uma exceção que comentarei mais abaixo. Em todo caso, por melhor aluno(a) que você seja, o primeiro semestre da faculdade é importante (e caótico) por vários motivos. Você pode ter tido que mudar de cidade, está fazendo novos amigos, está num ritmo de estudo que é bem diferente do ritmo do colégio, e provavelmente está tendo que aprender a fazer coisas que você nunca fez antes (fazer sua própria comida, lavar sua roupa, etc).

Após anos de muito estudo para passar no vestibular, a aparente liberdade que você passa a ter no primeiro semestre da faculdade pode ser um complicador grande. Ninguém vai te acordar para a aula, nem mandar você estudar; não existem reuniões com dos professores com os pais para falar que você precisa melhorar suas notas. Marvin, agora é só você.

Sobre a exceção: hoje em dia é comum que alguns alunos entrem na faculdade já com bolsas de iniciação científica garantidas por conta do desempenho em olimpíadas científicas. Neste caso, pegue a bolsa o quanto antes. Os orientadores destes projetos costumam propor projetos bem tranquilos, que fazem uma introdução ao assunto, sem exigir muitos pré-requisitos. Estas bolsas são ótimas para descobrir o quê você gostaria de estudar.

3. Quero fazer IC. Qual é o primeiro passo?

Mande email para professores da sua faculdade/instituto perguntando se eles teriam projetos de IC, e que você tem interesse em fazer iniciação científica. Mande seu histórico junto. Claro que você pode também procurar orientadores(as) em outras faculdades/institutos minimamente relacionados ao seu curso. Por exemplo, se é aluno(a) da FEM, talvez alguém do Imecc/Ifgw/Feec/Iq/Ic tope te orientar, mas vai ser muito difícil conseguir um(a) orientador(a) no IA/Fef, etc, e vice-versa.

Escreva um e-mail “individual”. Não coloque mais que um professor em cópia no e-mail. Professores universitários às vezes são melindrosos, e se um souber que tem outro como destinatário do e-mail nenhum dos dois vai te responder.

Como professores(as) podem demorar para responder mensagens, talvez seja bom procurar ic com “overbooking”, ou seja, mande emails para 2 ou 3 docentes e aguarde o retorno (seguindo a regra anterior, ou seja, não deixe o professor saber da sua estratégia).

Claro que você não precisa mandar e-mail para todos os professores da sua faculdade. Comece por aqueles com quem você fez alguma disciplina e teve um bom desempenho, ou pelo menos por aqueles que você tenha algum indício de que, caso o professor tenha uma opinião sobre você, que ela seja positiva. Por exemplo, se você fez uma matéria com o professor, passou com 5,0, e era aquele(a) aluno(a) que assinava a lista e ia embora, será mais difícil que ele aceite ser seu orientador — mas talvez nem você queira, né?

Com sorte, algum professor vai te responder com uma resposta positiva, do tipo “passe em minha sala, vamos conversar“. Isto é basicamente um “sim, posso te orientar“.

Alguns professores podem pedir para você escrever um projeto. Particulamente acho isto um equívoco, mas se for o caso, veja se não consegue um modelo de projeto com algum outro orientando do seu futuro supervisor para se inspirar.

(Na minha opinião, o(a) aluno(a) pode participar da definição do projeto, mas não deve ser o(a) responsável por escrevê-lo/definí-lo, principalmente no caso de um primeiro projeto de ic. Para jovens alunos(as), faltará experiência em muitos aspectos: para definir objetivos, para saber onde procurar referências bibliográficas, para definir o cronograma.. enfim, para tudo. Existem técnicas para escrever projetos.)

4. Um detalhe importante: com ou sem bolsa?

Existem duas modalidades de iniciação científica: com bolsa e sem bolsa. Como ainda vivemos num sistema capitalista você precisa de dinheiro, então é melhor fazer IC com bolsa do que sem bolsa. Porém, existem casos em que não há tanto prejuízo em fazer IC sem bolsa, bem como casos em que você pode ter bolsa (caso trabalhe, por exemplo).

IC sem bolsa: na Unicamp, mesmo o pedido de ICs sem bolsa segue o calendário do PIBIC (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica) e precisa ser aprovado. Outra possibilidade é você fazer “algo como uma IC” se matriculando na disciplina de Iniciação Científica (MA903 ou MA904 no caso do IMECC, verifique na sua unidade), e daí você precisa ficar atento(a) ao calendário de matrícula.

IC com bolsa: sua bolsa de iniciação científica em geral virá do CNPq ou da Fapesp. Alguns poucos casos de bolsas que vem de projetos/convênios com empresas. No caso do CNPq, existe um calendário unificado. No caso da Fapesp, o pedido pode ser feito em “fluxo contínuo”.

Infelizmente, existem mais pessoas pedindo bolsas de iniciação científica do que bolsas disponíveis, então você deve sempre considerar a possibilidade de pedir uma ic com bolsa, mas não ser selecionado (pelo currículo, ou pelo projeto, ou por alguma coisa aleatória que o parecerista vai alegar). Ter algo negado é sempre uma situação chata, mas acontece. A vida acadêmica é cheia de nãos. Um colega uma vez me disse que ele sempre “esperava um sim a cada 100 nãos”. A proporção nem sempre é esta, mas acontece, ficamos chateados. Fique triste, reclame da vida por uns dias, mas bola pra frente. E, se houver possibilidade de pedir reconsideração da decisão, não deixe de pedir.

5. Fique atento(a) ao calendário.

Se você pretende fazer IC voluntária ou pedir uma bolsa de IC do CNPq, em geral as inscrições abrem em algum momento de abril, e os projetos começam em setembro. Não deixe para procurar um orientador na véspera do prazo.

Se você/seu orientador pretende pedir uma bolsa de iniciação científica para a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), então não precisa se preocupar tanto com o calendário. A Fapesp aceita pedidos em fluxo contínuo, ou seja, a qualquer momento. Após o pedido, a análise demora entre 2 e 3 meses (veja o prazo médio que demora a análise aqui). As bolsas da Fapesp são bem concorridas, mas têm valor maior que as do CNPq, e ainda tem uma reserva técnica, para gastos com o projeto.

6. “Não consigo decidir qual área de pesquisa seguir!”

Para sua primeira IC, não se preocupe tanto com a área de pesquisa. Acredite, você não sabe o que quer (se sabe, este texto não é para você, você já deve saber qual é o caminho, sabichão).

Preocupe-se em procurar um orientador que seja conhecido como um bom orientador. Seus veteranos podem te ajudar nisto, mas nunca pegue a opinião somente de uma pessoa. Depois que tiver decidido sobre algumas possibilidades, procure  conversar com orientandos e ex-orientandos do seu futuro orientador para saber se o perfil de orientação se adequa a você.

Certamente você vai achar alguém que tope pedir uma bolsa pra você, ou pelo menos começar a fazer ic voluntária em algum projeto/laboratório.

7. Será que vou conseguir ter um bom desempenho na iniciação científica?

Em geral a dedicação necessária com a IC é parecida com o que você gasta com uma disciplina de 4 créditos, com a diferença de que você terá um atendimento para dúvidas bem mais exclusivo do que tem numa disciplina. Se começou a IC, é muito provável que consiga ter um bom desempenho, desde que se dedique.

8. O que meu orientador espera de mim?

Não sei, pergunte pra ele. Mas, em geral, orientadores esperam que você siga o cronograma, estude regularmente, e tenha dúvidas. Em matemática, é difícil estudar algo sem ter dúvidas. Leve as dúvidas, discuta. Faça exemplos,

É esperado também que você comece a entrar naquele mundo da linha de pesquisa do seu projeto, então frequente palestras do grupo de pesquisa, vá a defesas de mestrado/doutorado.

Dedique-se ao projeto como você se dedicaria a um hobby (dos que gosta).

9. Estou com dificuldades na IC. O que eu faço?

Parabéns, você está no caminho certo. Diga pro seu orientador que está com dificuldades, que não está entendendo nada, coisas assim. Ou então, se estiver com vergonha (não tenha!), tente conversar com algum outro aluno do grupo de pesquisa. Talvez ele possa te conseguir uma referência melhor para estudar o assunto.

sábado, 5 de março de 2022

Vem aí mais um primeiro dia de aula

Minha mãe conta que na primeira vez que fui para a escola, no fim da década de 80, ela ficou esperando na porta, na certeza de que eu, filho único e muito mimado, iria chorar e querer voltar pra casa. Ela se enganou completamente, eu nem dei tchau direito e fui direto pra sala. A mesma experiência se repetiu, anos depois, com meus dois filhos, em seus primeiros dias de aula.

Meu primeiro dia de aula "oficial" como professor na Unicamp foi no primeiro semestre de 2012. Eu já tinha lecionado o curso de verão daquele ano e também ministrado uma disciplina de pós-graduação em 2011, como pós-doc. Tive também experiências prévias como "professor", como PED na Unicamp e como Tutor (na UFV).

Como professor, a cada semestre o primeiro dia de aula me deixa nervoso, principalmente no primeiro semestre do ano. Já se foram 10 anos de docência e o sentimento continua bem parecido, incluindo uma noite ruim de sono na véspera. Mesmo sabendo o conteúdo, com slides ou notas de aula já preparados/organizados, a bibliografia escolhida, piadinhas sem graça já testadas, ainda fico pensando em como "começar" o semestre de forma efetiva.

Por enquanto, vazia. Em breve, cheia de alunos!

Em 2019, esse artigo do The Chronicle of Higher Education ("How to Teach a Good First Day of Class", por James Lang) conseguiu refletir bem o meu sentimento sobre o primeiro dia de aula: de acordo com psicóloga Sarah Rose Cavanagh:

“On the first few days of class, students will be forming their impressions of you, and this impression may be more important than much of what you do later.” 

Isso fez bastante sentido pra mim. Eu já abandonei disciplinas que pretendia fazer como ouvinte simplesmente pela primeira aula ter sido totalmente diferente do que eu esperava. "Se for isso aí, acho que eu aprendo mais lendo o livro". Sabe aquela série da Netflix que você até dá uma chance, mas nunca passa do primeiro episódio? Se isso acontece com sua primeira aula, acabou - você perdeu o aluno. "Ah, eu não me importo". Bom, eu me importo.

O que fazer para convencer esses vários jovens, já na primeira aula, que deveriam prestar atenção no que eu estarei falando pelas próximas 15 semanas? Como ser efetivo na primeira aula? E note que, nesse ponto, a aula ser de matemática não ajuda em nada..

Felizmente, o questão é antiga, e já foi abordada por muitos autores. A maioria das universidades tem um "centro de ensino" ou algo assim (no caso da Unicamp, é o (EA)^2 - Espaço de Apoio ao Ensino e Aprendizagem) com excelentes dicas sobre o primeiro dia de aula. Vou tentar resumir aqui algumas dicas que costumam estar nesses "guias do primeiro dia".

As primeiras dicas são do próprio artigo da Chronicle que citei acima:

  • Não comece a aula falando da ementa, das datas, etc. Comece com algum exemplo legal para despertar a curiosidade dos alunos.
  • Faça-os trabalhar na primeira aula, possivelmente em grupo, num problema que "motive" para as técnicas do curso - assim eles poderão se conhecer melhor e já perceber como o conteúdo que será ensinado é importante.
É importante também conversar um pouco com os alunos. Saber o que eles esperam do curso, se eles tem preocupações sobre os pré-requisitos.. No site do Center for Innovative Teaching and Learning da Indiana University Bloomington existe uma lista de expectativas dos alunos sobre o primeiro dia (vou deixar em inglês mesmo):
  • Is the class going to meet my needs?
  • Is the teacher competent?
  • Is the teacher fair?
  • Will the teacher care about me?
  • Will I be able to succeed?
  • What does the teacher expect from me?
  • What will I need to do to get a good grade?
  • Will I be able to juggle the workload for this course with the workload in my other courses?

Uma boa estratégia é tentar fazer com que, após a primeira aula, os alunos consigam ter uma resposta para pelo menos algumas dessas questões.

O site do Center for Teaching & Learning de Berkeley tem algumas dicas muito boas, e três delas são da categoria "coisas óbvias que às vezes precisam ser ditas" (cujo exemplo mais famoso é o aviso de "não faça xixi no chão", encontrado em banheiros de shopping). Novamente, como copiei do site, vou deixar em inglês:
  • Make a real beginning to class. Not just on the first day, but every day. Don't say "We might was well get started" or "Let's get started." Try instead, "Good Morning, I'm Professor xyz. Welcome to Sociology 10."
  • Use the whole class period, tell your students about yourself, discuss your teaching-learning philosophy, demonstrate your mode of teaching, cultivate your students' trust, foster a spirit of free and open inquiry, display your enthusiasm for the subject, and finally, display a sense of humor. 
  • Don't run out of time. Have a real ending to the class, especially on the first day. Conclude with something like "I look forward to seeing you on Wednesday."
Uma dica encontrada na maioria das referências que deixo abaixo é providenciar um "plano de desenvolvimento" detalhado, seja em papel, seja num site, Moodle, Classroom, etc. Você não precisa ficar falando os detalhes dele na sala, mas os alunos precisam ter acesso a ele logo no primeiro dia (ou até antes) e você deve estar aberto a responder dúvidas sobre ele (que devem aparecer nas primeiras semanas do curso).

O site do Center for Excellence in Learning and Teaching da Iowa State University também dá uma dica que aparece em muitos outros lugares: chegue mais cedo e cumprimente os alunos enquanto eles chegam. Não chegue atrasado no primeiro dia.

O site da Academy of Art University tem um "checklist"/template de como fazer um "primeiro dia de aula de sucesso", incluindo o tempo a se gastar em cada coisa. O foco deles é em aulas de artes, mas certamente é possível adaptar para outras áreas.

No meio de tudo isso, é preciso considerar a excepcionalidade do primeiro dia de aula de 2022.

A Unicamp suspendeu as aulas presenciais em 13 de março de 2020, uma decisão que se mostrou totalmente acertada. Depois de dois anos experimentando o "ensino remoto emergencial", retornaremos em breve, dia 14 de março de 2022, com as aulas presenciais para todos, ainda com medidas sanitárias obrigatórias (distanciamento, máscara) e uso de tecnologia ("robozinho") para contornar a questão da lotação das salas.

Alunos do segundo e terceiro ano do curso estão conhecendo o campus pela primeira vez. Outro dia conheci um grupo deles, enquanto visitavam o IMECC. Curiosamente, serão meus alunos agora no primeiro semestre. No meio da conversa, uma aluna comentou "sua aula, no dia 14, será nossa primeira aula presencial na universidade, depois de termos visto algumas das suas aulas em vídeo, olha a responsabilidade!".

Espero não decepcioná-los!

Um bom semestre a todos!

Leituras sobre o assunto:

  1. https://www.chronicle.com/article/how-to-teach-a-good-first-day-of-class/
  2. https://www.celt.iastate.edu/teaching/preparing-to-teach/10-ideas-for-a-great-first-day-of-class/
  3. https://cft.vanderbilt.edu/guides-sub-pages/first-day-of-class/
  4. https://www.cmu.edu/teaching/designteach/teach/firstday.html
  5. https://teaching.berkeley.edu/what-do-first-day-class
  6. https://teaching.cornell.edu/teaching-resources/designing-your-course/first-day-class
  7. https://dcal.dartmouth.edu/resources/teaching-methods/first-day-class
  8. https://teaching.washington.edu/topics/preparing-to-teach/teaching-the-first-day-of-class/
  9. https://tll.mit.edu/teaching-resources/how-to-teach/first-day/
  10. https://teaching.uwo.ca/teaching/engaging/firstday.html
  11. https://citl.indiana.edu/teaching-resources/teaching-strategies/first-day-strategies/index.html
  12. https://serc.carleton.edu/sp/library/firstday/index.html
  13. https://www.jstor.org/stable/1317819
  14. https://www.researchgate.net/publication/313259694_Students'_Perspectives_on_the_First_Day_of_Class_A_Replication
  15. https://durhamcollege.ca/ctl/getting-started/first-day-of-class/
  16. https://uwaterloo.ca/centre-for-teaching-excellence/teaching-resources/teaching-tips/managing-students/setting-tone/surviving-your-first-day-class


quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Setembro amarelo: o que nós matemáticos temos com isso?

A última edição do Noticiário da Sociedade Brasileira de Matemática publicou um texto meu sobre "setembro amarelo", cujo título é o mesmo que o deste post. O convite para escrever para o Noticiário veio depois do post anterior aqui do blog, sobre saúde mental.

Clique aqui para ler o Noticiário.

(Se o link acima estiver quebrado, baixe o texto clicando aqui.)


terça-feira, 14 de setembro de 2021

Saúde mental, matemática e a relação professor-aluno

Estamos no "Setembro Amarelo" e depois de alguma reflexão, decidi escrever este texto.

Minha graduação foi em bacharelado em matemática. Entramos 30 e saímos alguns, talvez metade - e foi um percentual bom. Durante a graduação, passamos por alguns momentos bem ruins. Lembrando deles hoje, percebo que alguns foram muito absurdos.

Um dos meus professores nunca corrigia provas e parecia dar notas aleatoriamente, com notas altas para os alunos que ele gostava. Ele aplicava as provas e na outra aula ficava 50 minutos dizendo como nós fomos ruins e que aquelas não eram provas de alunos que queriam ser matemáticos. Não devolvia as provas, dizendo que todos foram ruins. Uma certa vez, eu pedi pra ver minha nota mesmo com as ameaças. Ele fez a famosa pergunta "Tem certeza? Se eu corrigir sua prova, sua nota vai ser aquela." Pois eu pedi. E a nota foi 4,0. E minha prova estava muito boa, merecia ali no mínimo um 8,0. No fim, por algum motivo este professor parecia gostar de mim, e mesmo após esta "insubordinação", me deixou fazer a "nova prova" com a turma. E, confesso: tirando estes comportamentos, dando aula este professor era muito bom. As aulas eram boas mesmo e aprendi muita coisa.

As condições financeiras da minha família na época eram difíceis e eu não podia ficar reprovando em disciplinas. Precisava do dinheiro da monitoria e da iniciação científica, ou corria o risco de não conseguir terminar meus estudos. Ou seja: parei de contestar este tipo de coisa. O risco era alto. Terminar o curso era um problema de otimização: terminar no menor tempo, com notas razoáveis para fazer um mestrado e gastando a menor quantidade de dinheiro possível.

Um outro professor, numa aula de exercícios antes da prova, não conseguiu fazer a um dos exercícios que a turma pediu. Ele enrolou, enrolou e não conseguiu fazer. Chegou na prova, quem estava lá? O exercício que o professor não tinha conseguido fazer. Segundo ele: "Nossa, ontem de noite eu consegui fazer, daí resolvi colocar na prova pra vocês verem como é fácil". Na saída a prova, uma amiga me perguntou como eu tinha ido, e eu falei: "Fui mal, claro, mas também nem este %%%%%%% sabe fazer esta prova". O professor ouviu o xingamento e depois disto eu fui reprovado no curso (a única reprovação da turma). Minhas notas nunca passaram de 5 com questões anuladas por simplesmente nenhum motivo - tive uma questão de integração toda cancelada porque eu não coloquei um "+c" - e, no caso, era uma integral definida, ou seja, não tinha constante de integração. Mas não adiantava reclamar. Os outros professores, inclusive, sabiam da fama deste professor, mas não faziam nada.

Fiz mais dois cursos com este professor: no curso de Análise ele dava aula de exercícios de olho no gabarito do Elon, e mesmo assim não conseguia fazer as questões. Confesso que a gente até fazia piada com isto e pedíamos os exercícios difíceis que a gente já sabia resolver, só pra ver ele se enrolar (afinal, estavam na lista que ele tinha passado). Ele tirava ponto de quem não usava α para notação de ínfimo e para quem não multiplicava matrizes, ainda que fossem 2x2, usando explicitamente a regra de Kronecker. No outro curso que fiz com ele eu passei com uma nota razoável, e fui o único da turma que não ficou de exame. No dia do exame, ele ainda pergunta: "Ah, você está aqui? Não quer fazer o exame pra melhorar a nota?" Sabendo que ele sempre diminuia a nota de quem fizesse prova substitutiva, só dei um sorrisinho - e saí correndo.


Uma coisa que estamos acostumados a dizer é que "matemática é difícil mesmo", ou então "ah, todo mundo aqui passou pelas mesmas experiências e tá todo mundo aí, tranquilo". Todos quantos? Quantos que, ao passar por todas estas experiências, querem continuar neste meio, ou tem ânimo para continuar a graduação, ou ir para a pós-graduação? [e aqui vai uma recomendação da Netflix: The Chair; depois de assistir, você ainda vai querer seguir carreira acadêmica?]

Você não vai ao dentista com uma cárie e ele diz: "Nossa, este é o dente mais sujo que já vi, credo". Ou então "melhor seria arrancar todos os seus dentes, você não serve pra ter dente". Já pensou ir à médica por conta da hipertensão e ela falar "ah, vai morrer mesmo, nem gaste seu dinheiro comprando remédio". Como podemos, então, fazer isto com nossos alunos? Não faz sentido ficar falando para os alunos que "se você tirou menos que 4 nesta prova, não será um bom professor no futuro". Com grande probabilidade ele vai sim, e eu pelo menos não vejo vantagem em ter futuros colegas de profissão que me achem um babaca.

Mas enfim, este é o ambiente em que a maioria de nós, professores universitários de matemática fomos "criados". É como criar uma criança num ambiente violento: ela vai bater nos amiguinhos de sala. Não é por maldade, é por achar que aquilo é "legal". É difícil sair desta bolha, já que sempre vai existir o aluno que ri da piadinha (às vezes o famoso "rindo de nervoso"), e daí o ego fica alimentado e o ciclo recomeça.

De forma alguma estou passando pano pra professor sem noção, mas sim tentando dizer que as pessoas precisam receber feedback sobre as coisas erradas que elas fazem, antes que seja muito tarde pra isto. Na primeira situação inapropriada, é preciso que o professor saiba que certo comentário foi inapropriado - e este recado pode ser dado ao coordenador de curso pelo representante discente, por exemplo, para evitar certos constrangimentos.

Isto não é fácil, e pode ser uma experiência frustrante, já que em geral, ficamos com a impressão de que "nunca dá em nada". E sim, isto às vezes é verdade, principalmente pela expectativa do nosso "dar em alguma coisa", e aí entramos numa questão de "dosimetria da pena". Às vezes "deu em alguma coisa", nem que seja para melhorar outro colega. Existe gente que assim mesmo e não vai mudar, e a estes a instituição deve dar uma resposta, mas também existe muita gente legal que só tá seguindo o caminho errado, e pode melhorar com uma conversa franca.

Saber exatamente quais exemplos seguir às vezes é confuso e a gente erra. Eu entrei na Unicamp como professor em 2012. Nos primeiros cursos que lecionei, principalmente para turmas grandes, eu fazia um comentário bastante inadequado sobre a série histórica do percentual de aprovados/reprovados da disciplina. Acho que alguém me disse que fazia isto, e eu achei uma boa ideia. A tentativa era, no meu entendimento da época, "nobre": alertar os alunos sobre a dificuldade do curso e que eles deveriam levar a sério.



Agora, será que faz mesmo diferença o aluno saber, logo na primeira aula do curso, que naquela disciplina o índice de reprovação é de 30%? Isto tem mesmo impacto sobre o ritmo de estudo do aluno, ou será que só serve para gerar um pânico? Aliás, acho que é uma informação que eles já recebem dos seus veteranos, não é algo que o docente precisa enfatizar. Hoje tenho certeza de que este tipo de comentário não ajuda em nada e tenho receio de que estes comentários possam ter feito alguém desistir da disciplina ou algo assim, pela pressão que coloca no aluno. Peço desculpas a quem foi meu aluno nesta época e ouviu algo parecido com isso. Resumindo, era um comentário babaca. [Nota: Nesta época, minha nota no GDE, uma espécie de sistema paralelo de avaliação de docentes da Unicamp, era bem baixa, e eu não entendia o motivo. Bom, isto aí deve ser um deles. ]


Algumas coisas mudaram minha opinião e meu modo de agir. Além das chamadas à realidade que sempre recebo de minha esposa, também professora de matemática, e que sempre me lembra que tenho na Unicamp grande parte dos melhores estudantes do Brasil, me recordo de outros três motivos:

Uma delas foi o texto Como Desestimular os Bons Alunos, escrito pelo Prof. Mário Martinez, hoje professor emérito da Unicamp. Se você ler este texto e se reconhecer em alguma das coisas, então algo está muito errado e você deveria repensar a forma como está lidando com alunos. Hoje eu deixo um link para este texto no meu site, para que sempre me lembre. Mais recentemente, o livro Conversas com um jovem professor, do Karnal, causou o mesmo efeito em mim. Deveria ser leitura obrigatória para docentes, do ensino fundamental à pós-graduação.

Outra coisa que ajudou a mudar a forma como eu dou aula foi a experiência como coordenador de graduação. Ali eu tive contato com realidades muito diferentes da minha, na época de estudante. Pode não ser um fenômeno que acontece com todos os coordenadores, mas no meu caso eu entrei achando que estava num mundo colorido e tomei um choque de realidade. Se um aluno pede reingresso após reprovar em todas as disciplinas no 1o semestre, pode ser difícil para alguns compreender como isto é possível, e me incluo aqui. Isto não fazia parte da minha realidade de estudante. Felizmente tive alguns alunos nesta situação que me explicaram de forma bem didática e educada como é sim possível. Daí que a gente percebe como a universidade é diversa. A gente deixa de achar que questões sobre saúde mental dos estudantes são frescura para ter a percepção que estamos praticamente numa epidemia.

Uma terceira experiência que contribuiu para minha mudança foi lecionar a disciplina de estágio para a licenciatura em matemática. Fui responsável pelo curso por 2 semestres seguidos e foi uma das melhores coisas que eu fiz. Você passa a ter contato com um outro mundo, o dos alunos que passam perrengues nos estágios, sendo professores. E mais uma vez eu tive a sensação de que não tinha como ajudar, nem mesmo como aconselhar, pois aquela realidade estava muito distante da minha. Não sei se os cursos foram bons para eles, mas para mim foram muito bons. Hoje todos já são colegas de profissão, e fico muito feliz cada vez que encontro com algum deles na colação de grau. Eu ensinei alguma coisa pra eles, mas eles me ensinaram bem mais.


Acho que melhorei um pouco como professor nos últimos anos ao descobrir que copiar boas experiências que os colegas tem feito não é feio, e é até recomendável.

É o colega que dá bis para os alunos, o outro que faz uma competição de problemas, o que usa o Kahoot! para animar as aulas, que troca a referência bibliográfica por outra que seja mais adequada a este século e não exista só um exemplar datilografado na biblioteca. Na dúvida, existem excelentes livros, blogs, etc sobre ensino-aprendizagem de matemática, mesmo em nível superior. Durante o ensino remoto, nós docentes fizemos várias reuniões para nos ensinar a lidar com as tecnologias. Talvez seja hora de criar um fórum permanente sobre questões envolvendo a relação professor-aluno e ensino-aprendizagem.

Antes de olhar torto e pensar que qualquer coisa diferente do que era feito 60 anos atrás só vai servir para "facilitar a vida dos alunos", é preciso refletir sobre as experiências. Felizmente, o que mais tem no IMECC (e em outros lugares) é gente fazendo coisas legais sobre como ensinar matemática e no entendimento sobre a melhor forma de fazer acontecer a uma relação saudável professor-aluno.

A relação professor-aluno precisa ser cordial. Ela é sim desigual e existe uma hierarquia, mas, usando uma palavra da moda, devemos trazer uma boa dose de empatia para esta relação.

Aos alunos que estão lendo isto, gostaria que pedir que não se acomodem, e lutem para que a relação professor-aluno seja adequada para ambos os lados. O período que vocês passam na universidade não deveria ser lembrado no futuro como tendo sido traumático. Cobrem uma resposta institucional. Para nós docentes, acho que está na hora da gente começar a entrar nesta briga do lado de quem tá certo, ou então não adianta ficar fazendo post de apoio em blog.

Bom, este texto não tem objetivo claro, nem uma conclusão. E, infelizmente, ele não apresenta muitas soluções, no máximo algumas sugestões. Mas acho que agora é um bom momento para deixá-lo aqui no blog e, se alguém quiser conversar sobre qualquer uma desta questões, mande um e-mail ou apareça na minha sala (quando acabar a pandemia!).