sábado, 5 de março de 2022

Vem aí mais um primeiro dia de aula

Minha mãe conta que na primeira vez que fui para a escola, no fim da década de 80, ela ficou esperando na porta, na certeza de que eu, filho único e muito mimado, iria chorar e querer voltar pra casa. Ela se enganou completamente, eu nem dei tchau direito e fui direto pra sala. A mesma experiência se repetiu, anos depois, com meus dois filhos, em seus primeiros dias de aula.

Meu primeiro dia de aula "oficial" como professor na Unicamp foi no primeiro semestre de 2012. Eu já tinha lecionado o curso de verão daquele ano e também ministrado uma disciplina de pós-graduação em 2011, como pós-doc. Tive também experiências prévias como "professor", como PED na Unicamp e como Tutor (na UFV).

Como professor, a cada semestre o primeiro dia de aula me deixa nervoso, principalmente no primeiro semestre do ano. Já se foram 10 anos de docência e o sentimento continua bem parecido, incluindo uma noite ruim de sono na véspera. Mesmo sabendo o conteúdo, com slides ou notas de aula já preparados/organizados, a bibliografia escolhida, piadinhas sem graça já testadas, ainda fico pensando em como "começar" o semestre de forma efetiva.

Por enquanto, vazia. Em breve, cheia de alunos!

Em 2019, esse artigo do The Chronicle of Higher Education ("How to Teach a Good First Day of Class", por James Lang) conseguiu refletir bem o meu sentimento sobre o primeiro dia de aula: de acordo com psicóloga Sarah Rose Cavanagh:

“On the first few days of class, students will be forming their impressions of you, and this impression may be more important than much of what you do later.” 

Isso fez bastante sentido pra mim. Eu já abandonei disciplinas que pretendia fazer como ouvinte simplesmente pela primeira aula ter sido totalmente diferente do que eu esperava. "Se for isso aí, acho que eu aprendo mais lendo o livro". Sabe aquela série da Netflix que você até dá uma chance, mas nunca passa do primeiro episódio? Se isso acontece com sua primeira aula, acabou - você perdeu o aluno. "Ah, eu não me importo". Bom, eu me importo.

O que fazer para convencer esses vários jovens, já na primeira aula, que deveriam prestar atenção no que eu estarei falando pelas próximas 15 semanas? Como ser efetivo na primeira aula? E note que, nesse ponto, a aula ser de matemática não ajuda em nada..

Felizmente, o questão é antiga, e já foi abordada por muitos autores. A maioria das universidades tem um "centro de ensino" ou algo assim (no caso da Unicamp, é o (EA)^2 - Espaço de Apoio ao Ensino e Aprendizagem) com excelentes dicas sobre o primeiro dia de aula. Vou tentar resumir aqui algumas dicas que costumam estar nesses "guias do primeiro dia".

As primeiras dicas são do próprio artigo da Chronicle que citei acima:

  • Não comece a aula falando da ementa, das datas, etc. Comece com algum exemplo legal para despertar a curiosidade dos alunos.
  • Faça-os trabalhar na primeira aula, possivelmente em grupo, num problema que "motive" para as técnicas do curso - assim eles poderão se conhecer melhor e já perceber como o conteúdo que será ensinado é importante.
É importante também conversar um pouco com os alunos. Saber o que eles esperam do curso, se eles tem preocupações sobre os pré-requisitos.. No site do Center for Innovative Teaching and Learning da Indiana University Bloomington existe uma lista de expectativas dos alunos sobre o primeiro dia (vou deixar em inglês mesmo):
  • Is the class going to meet my needs?
  • Is the teacher competent?
  • Is the teacher fair?
  • Will the teacher care about me?
  • Will I be able to succeed?
  • What does the teacher expect from me?
  • What will I need to do to get a good grade?
  • Will I be able to juggle the workload for this course with the workload in my other courses?

Uma boa estratégia é tentar fazer com que, após a primeira aula, os alunos consigam ter uma resposta para pelo menos algumas dessas questões.

O site do Center for Teaching & Learning de Berkeley tem algumas dicas muito boas, e três delas são da categoria "coisas óbvias que às vezes precisam ser ditas" (cujo exemplo mais famoso é o aviso de "não faça xixi no chão", encontrado em banheiros de shopping). Novamente, como copiei do site, vou deixar em inglês:
  • Make a real beginning to class. Not just on the first day, but every day. Don't say "We might was well get started" or "Let's get started." Try instead, "Good Morning, I'm Professor xyz. Welcome to Sociology 10."
  • Use the whole class period, tell your students about yourself, discuss your teaching-learning philosophy, demonstrate your mode of teaching, cultivate your students' trust, foster a spirit of free and open inquiry, display your enthusiasm for the subject, and finally, display a sense of humor. 
  • Don't run out of time. Have a real ending to the class, especially on the first day. Conclude with something like "I look forward to seeing you on Wednesday."
Uma dica encontrada na maioria das referências que deixo abaixo é providenciar um "plano de desenvolvimento" detalhado, seja em papel, seja num site, Moodle, Classroom, etc. Você não precisa ficar falando os detalhes dele na sala, mas os alunos precisam ter acesso a ele logo no primeiro dia (ou até antes) e você deve estar aberto a responder dúvidas sobre ele (que devem aparecer nas primeiras semanas do curso).

O site do Center for Excellence in Learning and Teaching da Iowa State University também dá uma dica que aparece em muitos outros lugares: chegue mais cedo e cumprimente os alunos enquanto eles chegam. Não chegue atrasado no primeiro dia.

O site da Academy of Art University tem um "checklist"/template de como fazer um "primeiro dia de aula de sucesso", incluindo o tempo a se gastar em cada coisa. O foco deles é em aulas de artes, mas certamente é possível adaptar para outras áreas.

No meio de tudo isso, é preciso considerar a excepcionalidade do primeiro dia de aula de 2022.

A Unicamp suspendeu as aulas presenciais em 13 de março de 2020, uma decisão que se mostrou totalmente acertada. Depois de dois anos experimentando o "ensino remoto emergencial", retornaremos em breve, dia 14 de março de 2022, com as aulas presenciais para todos, ainda com medidas sanitárias obrigatórias (distanciamento, máscara) e uso de tecnologia ("robozinho") para contornar a questão da lotação das salas.

Alunos do segundo e terceiro ano do curso estão conhecendo o campus pela primeira vez. Outro dia conheci um grupo deles, enquanto visitavam o IMECC. Curiosamente, serão meus alunos agora no primeiro semestre. No meio da conversa, uma aluna comentou "sua aula, no dia 14, será nossa primeira aula presencial na universidade, depois de termos visto algumas das suas aulas em vídeo, olha a responsabilidade!".

Espero não decepcioná-los!

Um bom semestre a todos!

Leituras sobre o assunto:

  1. https://www.chronicle.com/article/how-to-teach-a-good-first-day-of-class/
  2. https://www.celt.iastate.edu/teaching/preparing-to-teach/10-ideas-for-a-great-first-day-of-class/
  3. https://cft.vanderbilt.edu/guides-sub-pages/first-day-of-class/
  4. https://www.cmu.edu/teaching/designteach/teach/firstday.html
  5. https://teaching.berkeley.edu/what-do-first-day-class
  6. https://teaching.cornell.edu/teaching-resources/designing-your-course/first-day-class
  7. https://dcal.dartmouth.edu/resources/teaching-methods/first-day-class
  8. https://teaching.washington.edu/topics/preparing-to-teach/teaching-the-first-day-of-class/
  9. https://tll.mit.edu/teaching-resources/how-to-teach/first-day/
  10. https://teaching.uwo.ca/teaching/engaging/firstday.html
  11. https://citl.indiana.edu/teaching-resources/teaching-strategies/first-day-strategies/index.html
  12. https://serc.carleton.edu/sp/library/firstday/index.html
  13. https://www.jstor.org/stable/1317819
  14. https://www.researchgate.net/publication/313259694_Students'_Perspectives_on_the_First_Day_of_Class_A_Replication
  15. https://durhamcollege.ca/ctl/getting-started/first-day-of-class/
  16. https://uwaterloo.ca/centre-for-teaching-excellence/teaching-resources/teaching-tips/managing-students/setting-tone/surviving-your-first-day-class


quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Setembro amarelo: o que nós matemáticos temos com isso?

A última edição do Noticiário da Sociedade Brasileira de Matemática publicou um texto meu sobre "setembro amarelo", cujo título é o mesmo que o deste post. O convite para escrever para o Noticiário veio depois do post anterior aqui do blog, sobre saúde mental.

Clique aqui para ler o Noticiário.

(Se o link acima estiver quebrado, baixe o texto clicando aqui.)


terça-feira, 14 de setembro de 2021

Saúde mental, matemática e a relação professor-aluno

Estamos no "Setembro Amarelo" e depois de alguma reflexão, decidi escrever este texto.

Minha graduação foi em bacharelado em matemática. Entramos 30 e saímos alguns, talvez metade - e foi um percentual bom. Durante a graduação, passamos por alguns momentos bem ruins. Lembrando deles hoje, percebo que alguns foram muito absurdos.

Um dos meus professores nunca corrigia provas e parecia dar notas aleatoriamente, com notas altas para os alunos que ele gostava. Ele aplicava as provas e na outra aula ficava 50 minutos dizendo como nós fomos ruins e que aquelas não eram provas de alunos que queriam ser matemáticos. Não devolvia as provas, dizendo que todos foram ruins. Uma certa vez, eu pedi pra ver minha nota mesmo com as ameaças. Ele fez a famosa pergunta "Tem certeza? Se eu corrigir sua prova, sua nota vai ser aquela." Pois eu pedi. E a nota foi 4,0. E minha prova estava muito boa, merecia ali no mínimo um 8,0. No fim, por algum motivo este professor parecia gostar de mim, e mesmo após esta "insubordinação", me deixou fazer a "nova prova" com a turma. E, confesso: tirando estes comportamentos, dando aula este professor era muito bom. As aulas eram boas mesmo e aprendi muita coisa.

As condições financeiras da minha família na época eram difíceis e eu não podia ficar reprovando em disciplinas. Precisava do dinheiro da monitoria e da iniciação científica, ou corria o risco de não conseguir terminar meus estudos. Ou seja: parei de contestar este tipo de coisa. O risco era alto. Terminar o curso era um problema de otimização: terminar no menor tempo, com notas razoáveis para fazer um mestrado e gastando a menor quantidade de dinheiro possível.

Um outro professor, numa aula de exercícios antes da prova, não conseguiu fazer a um dos exercícios que a turma pediu. Ele enrolou, enrolou e não conseguiu fazer. Chegou na prova, quem estava lá? O exercício que o professor não tinha conseguido fazer. Segundo ele: "Nossa, ontem de noite eu consegui fazer, daí resolvi colocar na prova pra vocês verem como é fácil". Na saída a prova, uma amiga me perguntou como eu tinha ido, e eu falei: "Fui mal, claro, mas também nem este %%%%%%% sabe fazer esta prova". O professor ouviu o xingamento e depois disto eu fui reprovado no curso (a única reprovação da turma). Minhas notas nunca passaram de 5 com questões anuladas por simplesmente nenhum motivo - tive uma questão de integração toda cancelada porque eu não coloquei um "+c" - e, no caso, era uma integral definida, ou seja, não tinha constante de integração. Mas não adiantava reclamar. Os outros professores, inclusive, sabiam da fama deste professor, mas não faziam nada.

Fiz mais dois cursos com este professor: no curso de Análise ele dava aula de exercícios de olho no gabarito do Elon, e mesmo assim não conseguia fazer as questões. Confesso que a gente até fazia piada com isto e pedíamos os exercícios difíceis que a gente já sabia resolver, só pra ver ele se enrolar (afinal, estavam na lista que ele tinha passado). Ele tirava ponto de quem não usava α para notação de ínfimo e para quem não multiplicava matrizes, ainda que fossem 2x2, usando explicitamente a regra de Kronecker. No outro curso que fiz com ele eu passei com uma nota razoável, e fui o único da turma que não ficou de exame. No dia do exame, ele ainda pergunta: "Ah, você está aqui? Não quer fazer o exame pra melhorar a nota?" Sabendo que ele sempre diminuia a nota de quem fizesse prova substitutiva, só dei um sorrisinho - e saí correndo.


Uma coisa que estamos acostumados a dizer é que "matemática é difícil mesmo", ou então "ah, todo mundo aqui passou pelas mesmas experiências e tá todo mundo aí, tranquilo". Todos quantos? Quantos que, ao passar por todas estas experiências, querem continuar neste meio, ou tem ânimo para continuar a graduação, ou ir para a pós-graduação? [e aqui vai uma recomendação da Netflix: The Chair; depois de assistir, você ainda vai querer seguir carreira acadêmica?]

Você não vai ao dentista com uma cárie e ele diz: "Nossa, este é o dente mais sujo que já vi, credo". Ou então "melhor seria arrancar todos os seus dentes, você não serve pra ter dente". Já pensou ir à médica por conta da hipertensão e ela falar "ah, vai morrer mesmo, nem gaste seu dinheiro comprando remédio". Como podemos, então, fazer isto com nossos alunos? Não faz sentido ficar falando para os alunos que "se você tirou menos que 4 nesta prova, não será um bom professor no futuro". Com grande probabilidade ele vai sim, e eu pelo menos não vejo vantagem em ter futuros colegas de profissão que me achem um babaca.

Mas enfim, este é o ambiente em que a maioria de nós, professores universitários de matemática fomos "criados". É como criar uma criança num ambiente violento: ela vai bater nos amiguinhos de sala. Não é por maldade, é por achar que aquilo é "legal". É difícil sair desta bolha, já que sempre vai existir o aluno que ri da piadinha (às vezes o famoso "rindo de nervoso"), e daí o ego fica alimentado e o ciclo recomeça.

De forma alguma estou passando pano pra professor sem noção, mas sim tentando dizer que as pessoas precisam receber feedback sobre as coisas erradas que elas fazem, antes que seja muito tarde pra isto. Na primeira situação inapropriada, é preciso que o professor saiba que certo comentário foi inapropriado - e este recado pode ser dado ao coordenador de curso pelo representante discente, por exemplo, para evitar certos constrangimentos.

Isto não é fácil, e pode ser uma experiência frustrante, já que em geral, ficamos com a impressão de que "nunca dá em nada". E sim, isto às vezes é verdade, principalmente pela expectativa do nosso "dar em alguma coisa", e aí entramos numa questão de "dosimetria da pena". Às vezes "deu em alguma coisa", nem que seja para melhorar outro colega. Existe gente que assim mesmo e não vai mudar, e a estes a instituição deve dar uma resposta, mas também existe muita gente legal que só tá seguindo o caminho errado, e pode melhorar com uma conversa franca.

Saber exatamente quais exemplos seguir às vezes é confuso e a gente erra. Eu entrei na Unicamp como professor em 2012. Nos primeiros cursos que lecionei, principalmente para turmas grandes, eu fazia um comentário bastante inadequado sobre a série histórica do percentual de aprovados/reprovados da disciplina. Acho que alguém me disse que fazia isto, e eu achei uma boa ideia. A tentativa era, no meu entendimento da época, "nobre": alertar os alunos sobre a dificuldade do curso e que eles deveriam levar a sério.



Agora, será que faz mesmo diferença o aluno saber, logo na primeira aula do curso, que naquela disciplina o índice de reprovação é de 30%? Isto tem mesmo impacto sobre o ritmo de estudo do aluno, ou será que só serve para gerar um pânico? Aliás, acho que é uma informação que eles já recebem dos seus veteranos, não é algo que o docente precisa enfatizar. Hoje tenho certeza de que este tipo de comentário não ajuda em nada e tenho receio de que estes comentários possam ter feito alguém desistir da disciplina ou algo assim, pela pressão que coloca no aluno. Peço desculpas a quem foi meu aluno nesta época e ouviu algo parecido com isso. Resumindo, era um comentário babaca. [Nota: Nesta época, minha nota no GDE, uma espécie de sistema paralelo de avaliação de docentes da Unicamp, era bem baixa, e eu não entendia o motivo. Bom, isto aí deve ser um deles. ]


Algumas coisas mudaram minha opinião e meu modo de agir. Além das chamadas à realidade que sempre recebo de minha esposa, também professora de matemática, e que sempre me lembra que tenho na Unicamp grande parte dos melhores estudantes do Brasil, me recordo de outros três motivos:

Uma delas foi o texto Como Desestimular os Bons Alunos, escrito pelo Prof. Mário Martinez, hoje professor emérito da Unicamp. Se você ler este texto e se reconhecer em alguma das coisas, então algo está muito errado e você deveria repensar a forma como está lidando com alunos. Hoje eu deixo um link para este texto no meu site, para que sempre me lembre. Mais recentemente, o livro Conversas com um jovem professor, do Karnal, causou o mesmo efeito em mim. Deveria ser leitura obrigatória para docentes, do ensino fundamental à pós-graduação.

Outra coisa que ajudou a mudar a forma como eu dou aula foi a experiência como coordenador de graduação. Ali eu tive contato com realidades muito diferentes da minha, na época de estudante. Pode não ser um fenômeno que acontece com todos os coordenadores, mas no meu caso eu entrei achando que estava num mundo colorido e tomei um choque de realidade. Se um aluno pede reingresso após reprovar em todas as disciplinas no 1o semestre, pode ser difícil para alguns compreender como isto é possível, e me incluo aqui. Isto não fazia parte da minha realidade de estudante. Felizmente tive alguns alunos nesta situação que me explicaram de forma bem didática e educada como é sim possível. Daí que a gente percebe como a universidade é diversa. A gente deixa de achar que questões sobre saúde mental dos estudantes são frescura para ter a percepção que estamos praticamente numa epidemia.

Uma terceira experiência que contribuiu para minha mudança foi lecionar a disciplina de estágio para a licenciatura em matemática. Fui responsável pelo curso por 2 semestres seguidos e foi uma das melhores coisas que eu fiz. Você passa a ter contato com um outro mundo, o dos alunos que passam perrengues nos estágios, sendo professores. E mais uma vez eu tive a sensação de que não tinha como ajudar, nem mesmo como aconselhar, pois aquela realidade estava muito distante da minha. Não sei se os cursos foram bons para eles, mas para mim foram muito bons. Hoje todos já são colegas de profissão, e fico muito feliz cada vez que encontro com algum deles na colação de grau. Eu ensinei alguma coisa pra eles, mas eles me ensinaram bem mais.


Acho que melhorei um pouco como professor nos últimos anos ao descobrir que copiar boas experiências que os colegas tem feito não é feio, e é até recomendável.

É o colega que dá bis para os alunos, o outro que faz uma competição de problemas, o que usa o Kahoot! para animar as aulas, que troca a referência bibliográfica por outra que seja mais adequada a este século e não exista só um exemplar datilografado na biblioteca. Na dúvida, existem excelentes livros, blogs, etc sobre ensino-aprendizagem de matemática, mesmo em nível superior. Durante o ensino remoto, nós docentes fizemos várias reuniões para nos ensinar a lidar com as tecnologias. Talvez seja hora de criar um fórum permanente sobre questões envolvendo a relação professor-aluno e ensino-aprendizagem.

Antes de olhar torto e pensar que qualquer coisa diferente do que era feito 60 anos atrás só vai servir para "facilitar a vida dos alunos", é preciso refletir sobre as experiências. Felizmente, o que mais tem no IMECC (e em outros lugares) é gente fazendo coisas legais sobre como ensinar matemática e no entendimento sobre a melhor forma de fazer acontecer a uma relação saudável professor-aluno.

A relação professor-aluno precisa ser cordial. Ela é sim desigual e existe uma hierarquia, mas, usando uma palavra da moda, devemos trazer uma boa dose de empatia para esta relação.

Aos alunos que estão lendo isto, gostaria que pedir que não se acomodem, e lutem para que a relação professor-aluno seja adequada para ambos os lados. O período que vocês passam na universidade não deveria ser lembrado no futuro como tendo sido traumático. Cobrem uma resposta institucional. Para nós docentes, acho que está na hora da gente começar a entrar nesta briga do lado de quem tá certo, ou então não adianta ficar fazendo post de apoio em blog.

Bom, este texto não tem objetivo claro, nem uma conclusão. E, infelizmente, ele não apresenta muitas soluções, no máximo algumas sugestões. Mas acho que agora é um bom momento para deixá-lo aqui no blog e, se alguém quiser conversar sobre qualquer uma desta questões, mande um e-mail ou apareça na minha sala (quando acabar a pandemia!).

terça-feira, 15 de setembro de 2020

E vamos para mais um semestre!

Depois de um primeiro semestre bastante complexo, é hora de começar o segundo semestre letivo deste ano estranho. Em posts anteriores deste blog você encontra um pouco da minha experiência lecionando Cálculo III de forma online no primeiro semestre:
Para o segundo semestre, terei uma turma de Cálculo II, uma turma de AM091 - Atividades de Matemática e uma turma de MM442 - Introdução aos Sistemas Dinâmicos. Neste semestre terei algumas condições contorno diferentes:
  • estou trocando o Classroom pelo Moodle, para disponibilizar as atividades aos alunos
  • estou querendo depender menos do iPad para as aulas.
A justificativa de usar Moodle é a seguinte: tenho que perder meu trauma dele. Eu sempre achei o tema do Moodle horrível, bem como a navegação. Porém, ele é o mais usado no mundo inteiro (?) e tem muitos recursos. Aprendi a trocar o tema do Moodle, e ele está mais bonitinho e apresentável. Além disto, o Moodle da Unicamp suporta LaTeX, e o Classroom deixa a desejar nisto. O Moodle permite fazer vários tipos de provas, e o Classroom só permite usar o Google Forms.

A justificativa para "abandonar" o iPad é "financeira": meu Macbook pifou e voltei a usar o Ubuntu (sabe quanto está custando um Macbook?). Ainda tenho o iMac, que conversa muito bem com o iPad, mas por questões logísticas prefiro usar o notebook. O problema é ter que montar um novo setup, agora com Ubuntu. Detalhe: não dá pra espelhar a tela do iPad no Ubuntu, o que vai complicar um pouco minha vida. No fim do semestre eu conto se deu certo.

Enfim, já aprendi a fazer algumas coisas no Moodle. Em particular, já sei fazer testinhos/provas, e abaixo segue um pequeno tutorial.


Vídeo mostrando como fazer questões com o Moodle.


quinta-feira, 23 de julho de 2020

Avaliações durante a pandemia: e se eles colarem?

Parece que existe um consenso de que alunos sempre colam. Talvez o ditado "a ocasião faz o ladrão" seja o lema universal da universidade: podendo colar, eles vão. E, fazendo provas em casa, fará com que todos colem. Será?

Facilitando a cola

Para facilitar a vida dos alunos, aqui vão alguns links com dicas para colar em provas: neste siteou neste site, ou neste aqui, ou mesmo neste aqui. A internet está cheia destas coisas.

Em tempos de pandemia, com provas online, fica mais fácil ainda, já que ninguém estará te vigiando. A estratégia da maioria dos professores tem sido de disponibilizar a prova, por meio de um arquivo .pdf, que terá que ser devolvido resolvido/fotografado algumas horas depois. Isto facilita muito o trabalho de colar.

Estratégia básica: reúna a turma toda num num grupo de whatsapp. Assim que o professor mandar o .pdf da prova, os mais espertinhos da turma a resolvem e passam pra todo mundo. É 10 garantido. Este método pode ser muito bem adaptado para o caso de provas "aleatórias" e até mesmo para o caso de provas "com vigilância" (proctoring). Não se esqueça de errar de propósito algumas coisas e cuidado com o plágio.

Neste ponto, preciso confessar uma coisa: nunca usei nenhum destes truques (ou nenhum outro, não me lembro de ter colado numa prova). Mas eu sempre soube como fazer. A honestidade só vale se ela for exercida por opção. Quem estudou comigo deve se lembrar de como eu era (sou!) o nerd chato, o que me leva à conclusão de que talvez nem todas as pessoas colem sempre.

Avaliações tradicionais

As avaliações em disciplinas de matemática costumam ser sempre iguais: duas ou três provas igualmente espaçadas no semestre, cada prova com 4 ou 5 questões. Quase sempre são questões dissertativas, do tipo "Resolva isto", "Calculo aquilo", "Encontre o valor de $x$" e por aí vai.

Eu mantenho no meu site um repositório das provas que apliquei (veja aqui), e você pode ver que eu também sigo este padrão. Deixar as provas antigas disponíveis pode ser um problema: afinal, se os alunos decorarem como fazer as provas do ano passado, conseguirão fazer a deste ano? Eu acho que não. Mas se eles fizerem várias questões parecidas com o que encontrarão na prova, talvez eles aprendam a resolver  problemas daquele tipo. Não é isto que fazemos quando passamos uma lista de exercícios para os alunos? 

Se o aluno decorar todas as provas dos últimos 20 oferecimentos do curso, ele conseguirá fazer a prova deste ano?



Dizem que (deve ser mentira) Einstein dava muitas palestras e sempre era levado para estas palestras pelo mesmo motorista que trabalhava na universidade. Depois de várias viagens, Einstein comentou com o motorista que estava entediado de sempre dar a mesma palestra sobre a teoria da relatividade. Disse o motorista:

_ Se quiser, posso substituí-lo por uma noite. Ouvi sua conferência tantas vezes que posso recitá-la palavra por palavra.

Einstein concordou e lá foi o motorista, vestido como Einstein (?), dar a palestra. Einstein sentou no fundo do auditório para descansar um pouco.

Dito e feito: o motorista repetiu exatamente o que ouviu Einstein falar nas últimas 20 vezes, e foi uma excelente palestra. No final, um professor decidiu fazer uma pergunta. O motorista não tinha a menor ideia de como responder aquilo, mas teve uma excelente ideia:

- Esta pergunta é tão fácil que até meu motorista, que está cochilando lá no fundo do auditório, saberá responder!

Assim como o motorista do Einstein, eu acho que decorar provas não funciona (ou não deveria funcionar). Mas treinar em coisas parecidas, funciona.

Decorar estas 1390 páginas talvez funcione..

Enfim, voltando à questão dos alunos desonestos que sempre colam. Como avaliá-los remotamente sem que eles usem os truques errados que ensinei acima? Regulamente a "cola" (ou quase isto)!

Mudança de postura

O primeiro passo é explicar para o aluno que quem precisa aprender é ele. Especialistas em ensino/aprendizagem chamam isto de "colocar o aluno no centro do processo de ensino e aprendizagem". 

O que tentamos fazer ao aplicar provas é medir esta aprendizagem, mas a aprendizagem em si dependerá só do aluno. Não depende nem da qualidade da aula, depende da capacidade e da vontade do aluno de aprender aquilo - e nisto o professor é muito importante, e existem estratégias que podem tornar a aula um momento melhor (ou pior) para a aprendizagem.

Provas e notas medem a aprendizagem? Acho que sim, desde que muitas coisas estejam calibradas, em particular: o que/como é ensinado, o que/como você estuda e o que/como é cobrado. Enquanto algum  aluno tiver a sensação de que "eu sei mais que ele, mas ele tirou uma nota maior que a minha", existiu um problema nesta sequência.

Estamos usando como hipótese geral que as disciplinas de um curso de graduação são importantes. Então, a história de que "o importante não é a nota, e sim aprender" é verdade. Difícil é convencer os alunos disto.

Modificando um pouco a forma de avaliar

Se você que está lendo isto é de exatas, pense por 20 segundos sobre como resolver a equação diferencial abaixo: 
$(x^2+1)y''-2xy'+2y=6(x^2+1)^2.$

Esta é uma equação de segunda ordem com coeficientes não-constantes e não-homogênea. Não existem métodos bons para resolvê-la, então em geral precisamos achar uma solução da equação homogênea associada (como?) e tentar fazer uma redução de ordem para cair numa equação que seja exata, ou que possa ser resolvida com um fator integrante. Esta ideia é excelente e funciona, mas é composta de vários pequenos "chutes" (aliás, como quase todo método de resolução de equações diferenciais).

O quanto de conhecimento de equações diferenciais saber resolver esta questão mede? Existem alunos que sabem, e muitos outros bons alunos que não conseguirão. No meio do processo, existem complicações de ordem algébrica (erros de conta) que piorarão o processo. Profissionalmente, no meio de uma pesquisa, o que você faria para resolver esta equação? Tentaria deduzir o método? Feita a classificação inicial, procuraria num livro? Usaria um software?

E se ao invés de pedir a solução, pedirmos para o aluno explicar como obter a solução, deixando que ele consulte livros (sem plágio!)? Seria uma boa oportunidade para ele aprender algumas habilidades que não estamos acostumados a cobrar em provas (de exatas).

Provas com consulta, ou mesmo provas realizadas em grupos, é algo muito raro de se ver em cursos de exatas. Durante a pandemia, a Olimpíada de Matemática da Unicamp decidiu realizar as provas em grupos, ao invés de inscrições individuais, pela primeira vez em 36 anos. E eu também decidi fazer isto no meu curso de Cálculo III (já fiz um relato sobre o curso aqui no blog).

O que fiz no semestre atual

Apliquei testinhos e provas de longa duração e que poderiam ser feitas em grupo e consultando materiais, desde que tudo fosse devidamente informado quando a prova fosse entregue.

As atividades avaliativas eram disponibizadas na 5a feira cedo e deveriam ser devolvidas na 3a feira, até 23h59. Consultando as estatísticas de acesso à prova pelo GitHub, dá pra ver um fenômeno interessante. Na 5a feira, muitos acessos. Praticamente todos os alunos davam uma olhada na prova, mas ninguém resolvia. O mesmo acontecia na 6a. No final de semana, em particular no domingo tarde/noite, acessos aumentavam. Alguns faziam e entregavam. Na 3a feira tarde/noite, mais um batalhão de acessos.

Os alunos eram obrigados a informar se a prova foi feita em grupo, e o maior grupo teve 5 pessoas (em só uma das atividades). Nem sempre todas as pessoas do grupo recebiam a mesma nota na prova. Mesmo entre membros de um grupo, não percebi casos de plágio. Outra coisa que eles descobriram é que usar softwares não é tão fácil assim, e que o Mathematica nem sempre retorna a resposta correta - ele retorna o que você pediu.

Aparentemente, 5 dias é muito tempo, mas o que parece acontecer é que eles se programavam para fazer a prova em algum momento destes 5 dias. Alguns alunos são PADs, outros fazem IC, e ter o final de semana para fazer a atividade é uma coisa boa. Em particular, eles aproveitavam o final de semana para se encontrar pelo Meet para discutir as questões.

Como já comentei antes, as notas estão mais altas do que num semestre normal. Este não é um fenômeno do meu curso, parece ser geral (fazer provas com consulta a livros e/ou colegas dá nisto, é óbvio). Isto fez com que o último testinho fosse entregue somente por cerca de metade da turma, e chegamos na prova com a maioria da turma já aprovada (uma besteira que eu fiz no cálculo da média da turma ajudou nisto). Resultado: um risco enorme de que ninguém fizesse a prova.

Como elaborar uma prova atrativa o suficiente para que alunos já aprovados numa disciplina, durante uma pandemia e com 1000 outras tarefas em outras disciplinas, fizessem? Como avaliar 4 meses de aula com 5 questões de uma prova? Como fazer tudo isto no meio de uma pandemia?

O resultado foi esta prova. As 5 primeiras questões eram obrigatórias, e precisaria fazer mais 2 questões entre as 5 finais. Algumas provas tiveram 20 páginas, em geral uma leitura bastante agradável (apesar de demorada). Muitas provas foram entregues digitadas (em LaTeX ou mesmo no Word) e todas estão sendo lidas detalhadamente. Aparentemente os alunos gostaram de fazer a prova, e eu gostei bastante do resultado.

Pelo conteúdo que recebi, principalmente pelos "mapas mentais" muito completos e as explicações detalhadíssimas fornecidas na questão 2, as explicações muito didáticas na questão 4 e as análises "psicológicas" feitas na questão 5, tenho a "convicção" de que eles sabem bastante sobre a matéria, pelo menos nas habilidades que eu pretendia avaliar.

Os trechos abaixo foram retirados de algumas da provas.

 "Psicologia matemática"

Alguns alunos optaram por fazer a prova toda em formato "deixa que eu te explico".
Transformada de Laplace de uma forma bem didática.

Muitos fluxogramas legais apareceram.

Campos de direções e análise qualitativa. Isto é ou não é pesquisa?

Jovens chamam isto de "mapa mental".

Mapa mental com exemplos (mesma aluna acima).

Explicações bastante convincentes sobre os métodos.

E ainda teve um epsilon de Análise 1, com supremo e ínfimo. Bom que eles lembraram disto, eu já tinha esquecido.

Finalmente, respondendo à pergunta do título, com outra pergunta: e se a gente aprender a burlar a cola? E se deixar de ser cola e passar a ser "prova com consulta"? Os jovens chamariam isto de plot twist, e talvez seja o que precisamos no momento. 

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Cálculo III na pandemia

Este post contém alguns comentários sobre o curso de Cálculo III que eu lecionei neste semestre atípico. A página disciplina pode ser vista neste link.

Cálculo III

O curso de Cálculo III da Unicamp é basicamente um curso de equações diferenciais. Começa com equações de primeira ordem (separação de variáveis, fator integrante, equações exatas), depois equações de segunda ordem (equação característica, solução por variação de parâmetros, solução por coeficientes a determinar), um pouco de transformada de Laplace (e aplicações a PVIs de 2a ordem). No meio tem uma parte de sequências, séries e séries de potências, que é preparação para o que vem depois: soluções em séries para equações diferenciais (separando os casos ponto regular, ponto singular-regular e outras aberrações aí no meio). O curso segue com EDPs clássicas (eq. do calor, eq. da onda, eq. de Laplace) que podem ser resolvidas por separação de variáveis e séries de Fourier, e no final começa a parte de sistemas de equações diferenciais lineares.

Na primeira vez que lecionei este curso, em 2015, tive a impressão de ser um curso com pouco espaço para o pensamento matemático ("curso chato"). Aliás, quando eu fiz este curso na minha graduação, tive a mesma impressão. Foi um dos cursos mais chatos que eu fiz na graduação (não fiz graduação na Unicamp). Veja bem, minha área de pesquisa hoje é em equações diferenciais (sistemas dinâmicos), então eu sei que o assunto não é chato, logo tem algo de errado aí. Talvez eu estivesse lecionando a disciplina de forma errada.

Para explicar o adjetivo "chato", vou dar rapidamente exemplos de cursos não-chatos: O primeiro é o curso de Geometria Analítica e Vetores. É um curso muito introdutório, mas onde os problemas aparecem naturalmente (como calcular a distância de um ponto a um plano?), e podem ser resolvidos com raciocínio matemático. É possível convencer os alunos de que "estamos ensinando-os a pensar", ao invés de ensinando coisas meio nonsense. Resumindo: não é um curso de decorar fórmulas. Outro exemplo? Os cursos de Cálculo I e II são cursos não-chatos. Existem fórmulas que podem ser decoradas? Sim, mas elas não precisam ser decoradas. O conhecimento aparece naturalmente a partir das definições de limite, derivada e integral de Riemann, e suas generalizações no Cálculo II. As fórmulas ajudam, mas não são difíceis de obter da definição, e portanto não precisam ser decoradas.

(Pausa para comentário paralelo: Uma coisa que pode influenciar a "chatice" do curso é a referência bibliográfica adotada: um curso de Cálculo com o Spivak certamente é muito mais legal do que um curso de Cálculo com o Stewart, apesar de ambos terem suas "motivações". Outra influência é certamente o professor.)

E o curso de Cálculo III? Bom, existem várias equações, e aparentemente cada uma se resolve de um jeito. Uma é exata, a outra precisa de um fator integrante, a outra tem que fazer uma mudança de variáveis, ou um processo de redução de ordem.. é como se cada método de solução funcionasse para uma quantidade pequenas de equações. Para o aluno, dada uma equação qualquer, se ela não está lá na seção do livro "Equações exatas", ele não vai ter a mínima ideia de que método aplicar. Eu sei, muitas áreas do conhecimento são assim: cada potinho resolve um problema, mas matemática não é assim. O pensamento matemático deveria ser mais importante do que a decoreba.

Ten lessons

Algum tempo atrás, li um texto escrito pelo matemático Gian-Carlo Rota chamado "Ten lessons I wish I had learned before I started teaching differential equations". A história é mais ou menos a seguinte: Rota, que era professor no MIT, escreveu um livro de equações diferenciais e por conta disto passou a ser quase que exclusividade dele lecionar esta disciplina. Ele conta que lá no MIT os alunos odeiam este curso - o que também é verdade na Unicamp. Por aqui, eu acho que é por conta dele ser o último curso de matemática antes de começarem a estudar as "coisas legais da engenharia". O curso é também odiado por professores: todo mundo aceita lecionar um curso de geometria analítica, mas para lecionar EDO tem que existir um certo grau de convencimento - afinal de contas, alunos de Cálculo III já estão no 3o semestre da universidade e são menos bonzinhos do que os calouros que fazem GA.



Enfim, como o título diz, o Prof. Rota dá 10 boas dicas de como ensinar equações diferenciais e de como não ensinar. O texto é muito bom e eu recomendo sua leitura agora. Para os apressados, vou tentar resumir cada ensinamento do artigo em uma frase (retirei as frases dos títulos das seções do artigo; não concordo com todas elas, mas sim com a mensagem geral).
  1. A maioria das coisas ensinadas são obsoletas.
  2. Reduza ao mínimo a discussão sobre equações de primeira ordem.
  3. Equações lineares com coeficientes constantes são importantes - esqueça os coeficientes variáveis.
  4. Ensine mudança de variáveis.
  5. Não fale muito sobre teoremas de existência e unicidade.
  6. Sistemas lineares são as coisas mais importantes.
  7. Fique longe de diferenciais.
  8. Esqueça problemas de modelagem.
  9. Motive a transformada de Laplace.
  10. Ensine conceitos, não truques.
Quando pedi para lecionar Cálculo III, tinha em mente produzir um curso mais ou menos na linha sugerida pelo Prof. Rota - respeitado o cumprimento da ementa. Era uma tentativa de tornar o meu curso de Cálculo III menos chato.

Existem boas discussões na internet sobre como implementar estas mudanças. Veja, por exemplo, aqui e aqui.

O que deu para fazer

Desde o começo o planejamento do curso já incluía "deixar tudo mais ou menos na filosofia do Prof. Rota", e isto foi explicado para os alunos (estava no site da disciplina). Esta filosofia não foi alterada pela pandemia.

Decidi dedicar pouco tempo a teoremas de existência e unicidade e deixar de lado equações muito específicas, por exemplo equações de segunda ordem com coeficientes não-constantes. Não existe construção matemática muito boa que leve à solução, no máximo adaptações do método de variação de parâmetros e técnicas de redução de ordem. São equações que tem importância histórica, mas as soluções são longas e tediosas. O mesmo acontece com sistemas de equações lineares com coeficientes não constantes: como construir a matriz fundamental? Então, decidi que o foco seria nos sistemas lineares, e usando a exponencial matricial (o que deveria envolver alguma discussão sobre forma de Jordan). Detalhando mais um pouco cada tópico do curso, ficou assim:
  • A parte de equações de primeira ordem foi dada com algum detalhe, pois eu acho que isto é bom para "esquentar os motores" dos alunos (após 2 meses de férias). Além disto, ao invés de desprezar os diferenciais, eu optei por definir formalmente formas diferenciais e mostrar como fazer a "multiplicação do dy/dx" de uma maneira adequada, construindo integrais primeiras para as formas. Acho que consegui definir com bom grau de formalismo a parte de integração de equações exatas, construindo potenciais. Ainda precisa de ajustes, mas ficou bom. Isto pode ser visto como uma preparação para as formas multilineares, que eles verão no curso de álgebra linear avançada. Além disto, fazendo deste jeito, eles já começam a ter a noção de que uma equação diferencial autônoma "pode ser vista como" um campo vetorial.

  • Nas equações de segunda ordem, o foco principal foi nas equações com coeficientes constantes. Eu poderia ter feito equações de ordem superior, mas acabei parando em ordem 2 (talvez tenha feito algum exemplo de ordem superior). Isto é algo que dá pra melhorar nos próximos cursos. Falei das equações com coeficientes variáveis, mas dei pouca atenção. A transformada de Laplace foi feita de um jeito melhor que as outras vezes, fazendo a ligação dela com a função de Dirac, e esclarecendo desde o começo qual seria o objetivo: transformar equações diferenciais em equações algébricas. Acho que ficou bom.
  • A parte de sequências, séries e séries de potências foi feita de forma adequada. Deixei muita coisa sem demonstrar, mas acho que foi feito com bom formalismo. No uso das séries de potências para resolver as EDOs, a ênfase foi em pontos regulares. Pontos singulares são importantes, mas eu acho que abordar isto num curso com pouco apelo a método numéricos é um erro (e eu não tinha tempo para falar de soluções numéricas). Sendo assim, usamos muito o Mathematica para calcular as séries de potências e estimar graficamente e numericamente as soluções. Acho esta abordagem correta, pois estudar a convergência é algo matemático, mas encontrar a solução "na mão" é algo que não faz muito sentido em 2020.
  • Nosso curso tem uma parte de EDPs, que foi feito de forma bem simples, mais como exemplo das séries de Fourier (que falei rapidamente) do que outra coisa. EDPs são muito importantes e eles terão oportunidade de aprender isto melhor em outro curso.
  • Na parte final do curso, fiz com detalhes a parte de exponencial matricial, inclusive provando teoremas de convergência. A importância disto está no fato de que "pegamos emprestado" a série da função exponencial e começamos a fazer contas com matrizes. Isto não faz sentido, a menos que saibamos pelo menos como calcular a norma de uma matriz. Defini a norma no espaço de operadores e fiz algumas contas com isto. Ficou bom. Definida exponencial, partimos para soluções de sistemas, uma ou duas aulas sobre forma de Jordan (caso 2x2) e o curso acabou por aí, deixando claro a semelhança entre campos vetoriais e equações diferenciais. A última aula foi sobre "estabilidade estrutural" light, onde construímos o diagrama traço-determinante. Estes conhecimentos serão úteis independente do curso do aluno.


Algumas outras coisas que fizemos

Mathematica

O curso foi bastante "mão na massa", mas às vezes a "massa" poderia ser o Mathematica - e esta filosofia serviu pra mim e pra eles. Eu comecei a pedir muitas coisas no Mathematica, e como muitos não sabem usar, eu escrevi um breve tutorial do Mathematica para EDOs, que está disponível neste link. Com o tutorial feito, eu me dei o direito de pedir coisas mais profissionais no Mathematica para eles. Por exemplo, ao encontrar a solução em série de potências, eles deveriam incluir um gráfico com os 10 primeiros termos.

Música! Música?

Com o Mathematica, também deu para falar muito sobre séries de Fourier, e até a ensinar como fazer o Mathematica tocar músicas, usando funções seno/cosseno para simular as ondas e produzir o som, a partir de uma frequência dada. O resultado está neste vídeo aqui e neste texto. Dá para melhorar muito esta explicação, em particular conseguindo uma música mais "suave" calculando a série de Fourier da função que dá a música. Neste ponto, não consegui fazer a conta de forma eficiente no meu computador; fica pro próximo curso melhorar esta parte.

Python

Eu comecei a perceber que muitos alunos entregaram os gráficos e soluções usando o Python. Finalmente criei coragem e aprendi o básico do básico - e fiz um tutorial para quem não sabe nada, que pode ser acessado aqui.

Covid-19

A modelagem do espalhamento do covid-19 em geral é feita usando equações diferenciais. Um modelo bem simples é o SIR. Fiz um material para eles (vídeo aqui e texto aqui) sobre isto. Também tem este post do blog, que dá mais detalhes sobre a construção do modelo. Mesmo assim, este foi um ponto negativo do curso: eu acho que poderia ter falado mais sobre este modelo, e explorado mais o assunto. As equações são não-lineares, é verdade, e está muito distante do objetivo deste curso falar disto, mas a gente podia ter falado mais, talvez considerando aproximações.

Dinâmica do curso

Foto que tirei no primeiro dia da aula.



Este seria um curso tradicional, com 2 provas. Originalmente eu tentaria usar um método 300 modificado para aplicar provas substitutivas, e aí chegou a pandemia. Tivemos 2 semanas de aula presencial antes da paralisação.

As aulas eram gravadas e disponibilizadas, bem como os slides. Encontros no Meet para dúvidas, explicar matéria e gravar as aulas. Aulas de exercício na 6a com a Mayara. Deu muito trabalho fazer isto. Eu tenho razoável proficiência com  computação, mas mesmo assim tive muitos problemas técnicos. Este post não é para reclamações, então nem vou entrar nesta discussão. No caso do Cálculo III, existe a grande vantagem de termos as famosas aulas da Profa. Ketty, que são excelentes, então os alunos poderiam acompanhar o conteúdo de forma muito parecida que seria dado presencialmente. Em todo caso, eu preferi gravar meus vídeos (não foram tantos). Eu acho muito difícil utilizar materiais de outros professores para dar aulas (mas confesso que espiei várias vezes os vídeos para ver se não estava deixando passar nada).

Enfim, o programa de curso foi modificado para testinhos quinzenais. Eles durariam até o fim da paralisação das atividades, depois retornaríamos e faríamos algumas aulas de revisão e uma prova presencial. O retorno presencial nunca chegou, e modifiquei novamente o programa para termos 7 testinhos e uma prova, sempre online. A participação da Mayara (PED) e do Pablo (PAD) foi muito importante nesta parte, pois eles faziam os gabaritos das listas e dos testes, e a Mayara dava aulas de exercícios. Sem eles, este curso teria sido muito mais complicado (para todos).

Todas as atividades seriam disponibilizadas na 5a feira e deveriam ser entregues na 3a feira. É muito tempo? Talvez seja. Mas a situação é bastante atípica, e todas as outras disciplinas estão com trabalhos semanais.

Com todo este tempo, os alunos não vão fazer o trabalho em grupo? Talvez sim, e isto é ótimo. Trabalhar em grupo foi incentivado, desde que eu fosse informado dos grupos, e isto sempre aconteceu. Entregas individuais, e algumas vezes membros do grupo acabavam com notas distintas.

E se eles pagarem alguém pra fazer o testinho? Isto não era permitido. Na minha época de aluno, eu não teria feito isto. Além disto, não sou fiscal da consciência de ninguém, mas não me parece que aconteceu (pelo menos não em massa). O que acontecia era a pessoa às vezes entregar faltando uma questão e comentar que "não deu tempo, tive que estudar para outra matéria", ou então "esta semana foi psicologicamente ruim pra mim, não consegui fazer tudo". Eu tenho um filho fazendo atividades online na escola, e estou vendo como isto é complicado.

No meio do curso, decidi organizar um "duelo de equações diferenciais". Foi uma atividade legal, a maioria da turma participou - algumas pessoas não participaram e explicaram o motivo: em geral algo como "é atividade extra, e apesar de ser bem legal, não tenho condições de assumir mais isto para fazer". Ok, segue o jogo.



Foi montado um grupo de WhatsApp com a turma, que funcionou para muitos fins: comunicação "extra-oficial" de coisas do Classroom, avisos de data de testinhos, enquetes rápidas sobre os rumos do curso e conversas aleatórias sobre pandemia, vida, memes, animes, Unicamp, etc. Sim, existiram mensagens aos sábados de noite perguntando sobre como resolver tal equação, que foram devidamente respondidas. Foi uma experiência bem legal, que irei repetir com as futuras turmas.

Conclusão

Eu consegui lecionar, na sequência, os cursos de Geometria Analítica, Cálculo I, Cálculo II e Cálculo III, e agradeço à coordenação de graduação por terem aceitado minhas propostas e permitir que os cursos fossem dados nesta sequência.

O objetivo de lecionar os cursos nesta sequência foi o de organizar materiais para i) facilitar meu trabalho no futuro, ii) fazer slides bonitinho que pudessem ser gravados para testar o uso da metodologia da sala de aula invertida e iii) num futuro bem distante, fazer um site interativo contendo todo este conteúdo (estilo o Math24 ou Paul's Online Notes).

Para isto funcionar, neste semestre foi a vez do Cálculo III. Como eu queria ter um certo grau de liberdade para introduzir mudanças no curso (trocar ordem de conteúdos, por exemplo) pedi para lecionar pro Cursão. A turma do Cursão não é "mais difícil" que a turma coordenada, mas o conteúdo é passado de uma forma diferente, mais adequada para futuros físicos e matemáticos (leia-se "existem demonstrações").

E daí veio a pandemia. Plano de curso alterado, aulas presenciais não foram possíveis (uma pena, eu tinha já preparadas algumas atividades no Kahoot!) e tudo precisaria ser feito de forma mais planejada. Todos descobrimos que é possível dar aula e também assistir aula online, e felizmente todos descobrimos que preferimos muito mais que ela seja presencial (ou "mista"). Durante o curso, eu passei um formulário na turma perguntando sobre como estava o andamento do curso. As respostas e comentários estão aqui e aqui.

No caso desta disciplina/turma, eu acho que o resultado final foi positivo, mesmo com a pandemia. E acho que o curso ficou "menos chato" do que as outras vezes que lecionei. Nos próximos dias eu vou passar um formulário para os alunos avaliaram como foi o curso (como fiz nos semestres anteriores) e completo o post com este feedback.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Estimando melhor casos brasileiros de covid-19 usando dados de outros países

A tabela abaixo usa dados da OMS (confirmados e mortes) e da ONU (dados populacionais). Dá para trabalhar muito com estes dados, mas queria chamar atenção para os vários percentuais de mortalidade e como podemos usar isto para estimar o número de casos no Brasil.
A taxa de mortalidade deveria ser muito próxima em todos os países, mas não é. A explicação mais simples para isto é a quantidade de testes que estão sendo realizados, incluindo assintomáticos e principalmente em mortos.Dos países na tabela, Alemanha e Coréia do Sul estão fazendo testes em massa - e neste caso a mortalidade é parecida.
Países como Espanha e Itália pararam de fazer testes por vários motivos. Na Espanha, em algum momento os testes simplesmente acabaram, veja aqui. Na Itália, problema parecido aconteceu, e a situação só foi controlada em algumas poucas cidades que testaram em massa no começo e fizeram um lockdown. O exemplo (positivo) mais claro disto é a cidade italiana de Vò (veja aqui).
Perceba ainda que  o percentual da população infectada nestes países é enorme, e mesmo sendo países ricos, haja testes. Chega um momento que deve ser mais prático ir tratando todo mundo e pronto. Mais um fator que explica o alto índice de mortalidade em alguns países: a idade da população. A população da Itália tem média de idade muito alta, mas não deveria destoar tanto do resto do mundo. A falta de testagem em massa continua sendo a melhor explicação. O Reino Unido admitiu recentemente isto, e inclusive estão elogiando os testes em massa que a Alemanha está fazendo (veja aqui).

Enfim, o que a tabela diz sobre o nosso caso?

    Se considerarmos uma mortalidade de 2,38% (média entre a taxa de Alemanha e a taxa da Coreia), usando os dados de mortos no Brasil, devemos ter pelo menos 65 mil casos confirmados no Brasil, ao invés dos 25 mil oficiais.
    Outros fatores que atestam nossos dados estarem bastante comprometidos: 
    • o percentual da nossa população que está infectada é baixíssimo, menor ainda que o da Coreia (confira na tabela), que fez um lockdown completo, muito diferente do que está acontecendo aqui;
    • muitos mortos estão sendo testados, ou seja, temos potencial para muito mais infectados, principalmente assintomáticos;
    • por mais que desejamos otimistas, ainda não chegamos nem perto do pico de infecções. Ontem, pela primeira vez, atingimos 200 mortos/24h.
    É aqui que o problema fica sério: se a estimativa de 65 mil casos estiver certa (e meu chute é que ela também está bem abaixo do real), temos grande potencial para em pouco tempo estarmos bem pior do que os EUA, que hoje está com quase 2.000 mortos/24h.
    Os dados aqui batem bastante com os produzidos por Vinicius Bastos Gomes e Fernando Wittmann (veja aqui), e neste estudo, usando dados já consolidados, eles indicam que EUA levaram 10 dias para pular de 1.500 mortos para 10.000. Se nossa situação for parecida com a deles, já teremos passado a barreira dos 10.000 mortos no começo de maio. Se estivermos piores que os EUA (muitas regiões do Brasil ainda não estão testando quase nada), então mais gente ainda terá morrido até lá.
    #FiquemEmCasa